NOTÍCIA
Objeto de disputa após a redemocratização do pós-guerra, lei levou 13 anos para ser aprovada
Publicado em 14/12/2016
Exatos 35 anos antes de o presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB/SP) sancionar a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, João Goulart (PTB/RS), então recém-alçado à presidência do país sob o arranjo do parlamentarismo, promulgava a primeira LDB brasileira. A assinatura de Goulart saiu estampada na edição de 21 de dezembro de 1961 do Diário Oficial da União, mais de 13 anos após a apresentação do primeiro projeto da lei educacional ao parlamento brasileiro. Nesse longo intervalo entre a apresentação do anteprojeto enviado à Câmara Federal em outubro de 1948 pelo então ministro da Educação, Clemente Mariani (UDN/MG), e sua aprovação, nove diferentes cidadãos sentaram-se na cadeira de presidente da República, seis deles efetivos e três interinos.
A história dessa longa tramitação revela facetas e tensões não só da educação nacional, mas do Brasil como um todo. Em 1946, com o fim da 2ª Guerra e a queda da ditadura Vargas, a eleição de Eurico Gaspar Dutra (PSD) e a elaboração de uma nova Constituição Federal, o país tentava reorganizar-se. Para tanto, a Constituição previra a elaboração de uma lei que norteasse a educação nacional. Um dos dois ministros da UDN, que fora derrotada pela aliança entre PSD e o PTB de Vargas na eleição à presidência, Mariani convocou uma comissão de notáveis para a elaboração do anteprojeto de diretrizes e bases da educação.
Como registra Dermeval Saviani no capítulo 9 (Predominância da pedagogia nova – 1947-1961) de seu livro História das ideias pedagógicas no Brasil (Autores Associados, 2007), os artífices do Manifesto da Escola Nova, de 1932, predominavam na comissão de elaboração do anteprojeto. Lourenço Filho era o presidente; Almeida Júnior, o encarregado da subcomissão do ensino primário; Fernando de Azevedo presidia a subcomissão do ensino médio e Anísio Teixeira, “também convidado, não pôde integrar a Comissão, mas colaborou com sugestões”. Pedro Calmon, então reitor da Universidade do Brasil (futura UFRJ), presidiu a subcomissão do ensino superior.
Como frisa Saviani, a maioria dos 16 membros da comissão pendia para o lado dos escolanovistas. Mas havia dois representantes dos educadores católicos, Alceu Amoroso Lima e padre Leonel Franca. Mais tarde, na segunda metade dos anos 50, seriam os católicos, aliados ao deputado Carlos Lacerda (ironicamente, da própria UDN), os grandes opositores das ideias preconizadas por Almeida Júnior, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e vários outros educadores brasileiros de correntes diversas, entre eles o futuro presidente FHC.
Num primeiro momento, o projeto acabou sendo obstruído por Gustavo Capanema, um dos mais longevos ministros da Educação da história republicana, que ficou no cargo 8 anos sob Getúlio Vargas. Como a proposta relatada por Almeida Júnior defendia a descentralização de atribuições, conferindo a oferta da educação pública a estados e municípios e deixando a União com função apenas supletiva e regulatória, Capanema, relator do anteprojeto, acabou por recomendar e conseguir seu arquivamento.
O ex-ministro, defensor do legado educacional da era Vargas, momento em que muitas das ideais do movimento da Escola Nova haviam sido efetivamente introduzidas no país, lutou para que essa imagem histórica não fosse destruída e usada como símbolo por adversários políticos.
Reapresentado dois anos depois, só foi aprovado pela Comissão de Educação e Cultura da Câmera Federal em novembro de 1956. Poucos dias antes, um discurso do padre e deputado Fonseca e Silva, de Goiás, desencadearia uma das maiores disputas educacionais do país. Ele investe contra o projeto e contra as figuras de Anísio Teixeira e de Almeida Júnior, acusando-os de serem contrários à oferta de ensino pelas escolas privadas religiosas. Para tanto, não se priva de associar o projeto e a figura do filósofo e educador americano John Dewey, inspiração intelectual de Teixeira, ao comunismo que estaria querendo apoderar-se da educação nacional. Versão mais antiga do mesmo estratagema utilizado em diversos outros momentos da história nacional.
Como é comum em disputas dessa ordem, vale menos o que o adversário diz do que a imagem que nele se quer pespegar. Assim, passou-se a bradar que os defensores do projeto queriam instituir o monopólio estatal na educação. Com aspirações políticas maiores, o ex-comunista Carlos Lacerda aproveitou a oportunidade e, em novembro de 1958, apresentou um substitutivo ao projeto, seguido de outro em janeiro de 59, que ficariam conhecidos pelo nome de “Substitutivo Lacerda”.
Orador temido, Lacerda passou a propugnar a prevalência do “direito inalienável e imprescritível da família” de escolher a educação dos filhos, como relata o falecido professor da Faculdade de Educação da USP José Mário Pires Azanha em seu artigo “Roque Spencer Maciel de Barros, defensor da escola pública” (revista Educação e Pesquisa, 1999).
Um dos articuladores do movimento de defesa da escola pública, Barros ajudou a desconstruir o discurso de Lacerda, mostrando que, sob a fachada da visão liberal, havia mais oportunismo do que fundamento filosófico, como bem relatado no artigo de Azanha.
Assim, três grupos distintos, como identifica Saviani, juntaram-se para defender a oferta de educação pública: os “liberais-idealistas”, grupo que tinha como epicentro o jornal O Estado de S. Paulo, instituição-chave para a fundação da Universidade de São Paulo; os “liberais-pragmatistas”, os históricos educadores da Escola Nova (decisivos com a apresentação do manifesto “Mais uma vez convocados”, documento aglutinador apresentado por Fernando de Azevedo em 1959); e a corrente de “tendência socialista”, capitaneada pelo sociólogo Florestan Fernandes, também da USP.
Juntas, as correntes conseguiram aquela que talvez tenha sido, em proporção, a maior articulação social em defesa da escola pública. O texto final da LDB foi, afinal, um condensado possível entre a proposta inicial e os filtros interpostos pela representação do Congresso Nacional.