NOTÍCIA
Vistas como pouco “práticas”, disciplinas sofrem questionamento na Base Nacional Comum
Publicado em 13/10/2016
Oito anos após terem se tornado disciplinas obrigatórias do ensino médio, filosofia e sociologia estão consolidadas como parte dos currículos, mas ainda pairam dúvidas sobre a contribuição que de fato promovem na educação dos jovens.
Formação inadequada dos docentes, engessamento dos currículos escolares, superficialidade dos conteúdos e contaminação ideológica são alguns dos problemas apontados como os responsáveis para que elas não cumpram plenamente a missão de preparar os estudantes para o exercício da cidadania e de formá-los como sujeitos.
Com o MEC gestando uma reforma do ensino médio, não se sabe ao certo o peso que filosofia e sociologia terão no futuro desenho desta etapa do ensino, nem se continuarão como obrigatórias para todos os alunos. Mesmo no formato atual há discordâncias se elas são contempladas em demasia ou escassez.
A antropóloga Eunice Durham, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP), é uma das mais duras críticas do modelo adotado hoje pelo sistema educacional. Para ela, filosofia e sociologia não deveriam sequer ser disciplinas.
— Na época da aprovação da lei, em 2008, a pressão corporativa foi muito grande. Sempre fui contra. Os estudos sociais – que incluem história e geografia – têm de ser capazes de lidar com os problemas básicos do ensino médio. Não faz sentido ter essas disciplinas isoladas — avalia a antropóloga e pesquisadora.
Segundo ela, a questão não é exclusiva da sociologia e da filosofia: todo o programa do ensino médio é muito rígido, não contemplando as diferentes vocações dos alunos. Para Eunice, só quem de fato se interessa pelo assunto deveria estudá-lo com mais profundidade. “Mesmo quando se faz um projeto diferente, é sempre para toda a escola. Por isso o aluno reclama que a escola é chata, e o professor diz que os alunos são desinteressados. Onde houver dinheiro, sociologia e filosofia deveriam ser disciplinas optativas”, opina.
Presidente da Sociedade Brasileira de Filosofia da Educação, Silvo Gallo, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), defende que filosofia e sociologia sejam disciplinas para todos, mas apenas porque é assim que a escola funciona.
— Se o currículo tivesse outra perspectiva, seria interessante ver a filosofia envolvendo conteúdos de forma transversal. Mas defendo que seja disciplina, por ser a única forma de ela se afirmar dentro da estrutura da escola, que é disciplinar — pondera o professor da Unicamp.
Ele lembra que as escolas só contratam professores de certas formações de acordo com as disciplinas que são obrigadas a oferecer. Não fosse pela obrigatoriedade legal, dificilmente haveria filósofos ou sociólogos dentro do ambiente escolar.
Sonia Campaner Miguel Ferrari, professora de filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), defende que essas disciplinas deveriam, na verdade, ter maior número de aulas.
— Infelizmente o tempo é exíguo, porque a concepção da escola é a de uma educação técnica, utilitária. Dentro dessa visão, os saberes técnicos são mais importantes — critica a professora da PUC.
Portanto, explica Sonia, da forma como foram incorporados ao currículo, os conhecimentos promovidos são superficiais, e fica difícil que eles promovam transformações profundas no pensamento e atitudes dos jovens. “As pontes entre a vida dos alunos e a discussão mais especializada levam tempo para serem construídas, porque a relação não é imediata. Às vezes o professor até consegue mobilizar alguns alunos, mas apenas aqueles mais atentos ao tema”, afirma.
Já Eunice Durham, da USP, acredita que a escola precisa sim ser útil – e seria mais útil ensinar questões práticas aos adolescentes, fazê-los entender como é a estrutura do sistema político, o que faz cada poder, como o poder é dividido entre municípios, estados e governo central, por exemplo.
— Seriam informações básicas para o exercício da cidadania, e nem isso eles estão sabendo. Em vez disso, a sociologia hoje parece mais uma pregação do marxismo do que qualquer outra coisa – e um marxismo atrasado, simplificado –, acredita Eunice Durhan.
Coordenadora do Laboratório de Ensino de Sociologia Florestan Fernandes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a professora Anita Handfas discorda que haja uma tendência marxista ou de esquerda nos currículos de sociologia.
— Ainda que se tenha de fazer um recorte para atender aos alunos do ensino médio, o que se mostra é uma ciência, com metodologias e instrumentos teóricos, para tratar de fenômenos sociais — defende.
Ela cita que nos materiais didáticos escolhidos no último Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), há livros trazendo contribuições de autores clássicos internacionais e dos que pensaram o Brasil, assim como pesquisas atuais sobre temas variados, como violência, indústria cultural, desigualdade social e de gênero.
Anita reconhece a existência de uma disputa ideológica que vem ganhando destaque por causa do movimento Escola sem Partido, mas diz que se trata de uma questão muito mais ampla do que o conteúdo previsto em uma ou outra disciplina: a disputa é sobre o papel da própria escola.
— Escola sem Partido é um movimento perverso, que pretende interferir na função social da escola, que é de difundir e dar acesso aos estudantes aos conhecimentos socialmente produzidos e acumulados pela humanidade, nas suas dimensões cultural, tecnológica, artística, social e política — diz a docente da UFRJ.
Ainda que defenda o conjunto de experiências que o Brasil vem construindo no ensino de sociologia, a professora da UFRJ sabe que há muito a caminhar. Um dos desafios, explica, é o professor ser capaz de apresentar de forma satisfatória as três áreas que deveriam ser contempladas: a antropologia, a ciência política e a sociologia em si.
— Pela própria experiência, pela formação que tiveram, muitos professores acabam preferindo uma das áreas. O que a gente espera é que todos sejam capazes de operar as três –, afirma professora Anita Handfas.
Se já é um desafio para quem se formou em ciências sociais, o quadro se agrava quando as aulas são dadas por professores leigos. “Principalmente longe das grandes cidades, ainda se vê muita distorção, de professores responsáveis pela disciplina formados em outras áreas”, constata Anita.
Como os conhecimentos sociológicos estão muito próximos do cotidiano das pessoas, a disciplina produz a sensação de que todos são capazes de lidar com eles, mesmo sem que sejam cientistas sociais.
— O docente deve promover uma mediação didática que apresente os conceitos basilares, de modo a fazer com que o aluno possa se munir de referências para sair da forma difusa e isolada de compreensão do mundo social em que está inserido e passar a compreendê-lo de forma mais sistematizada — avalia Anita.
A formação docente é essencial para levar a discussões profundas também nas aulas de filosofia. Para Sonia Ferrari, da PUC-SP, a universidade falha ao passar a ideia de que a função do professor é menor do que a do pesquisador.
— Todo aluno de graduação quer ter uma linha de pesquisa. Mas, para ser licenciado, a relação tem de ser muito mais com pessoas do que com livros – para entender que cada um tem suas experiências próprias, seus modos de compreender — diz Sonia.
E a docência, defende Sonia, exige muita pesquisa. “Coordenei um grupo de estudos com alunos da graduação e desenvolvemos uma progressão didática que começava com uma conversa sobre temas de interesse do aluno, sobre música ou outra forma de arte. A discussão ia sendo depurada a partir de ideias filosóficas”, conta. Os jovens eram convidados a falar de amor, para então serem apresentados ao Banquete de Platão, exemplifica.
Uma das grandes dificuldades no dia a dia em sala de aula é promover o contato do aluno do ensino médio, em geral com deficiências em interpretação de texto, com leitura em primeira mão de sociólogos e filósofos consagrados, tarefa exigente e desgastante até mesmo para alunos universitários.
Se por um lado não faz sentido que um público não especializado se debruce sobre teorias complexas, o adolescente deve ter seu direito de acesso aos clássicos garantido pelos professores, defende Anita, da UFRJ.
— O professor deve fazer uma mediação, apresentar os autores – clássicos ou contemporâneos – de forma articulada com a realidade, para que possam ser bem compreendidos — afirma a professora.
Silvio Gallo, da Unicamp, também defende que os alunos sejam expostos a textos de filósofos, mas defende que os adolescentes são sempre capazes de “boas compreensões”.
— Costumamos pensar a leitura de uma forma tradicional, que implica uma concepção de que existe uma interpretação correta, e desejamos que o estudante seja capaz de identificar a “verdade” do texto. Mas podemos partir da ideia de que não há verdade no texto. Assim, a leitura é uma forma de dialogar, é experimentação — sugere o professor.
Para Silvio, o estudo de filosofia deveria ser sempre ativo, ou seja, levar a uma experiência de pensamento. “Defendo a ideia de tomar a filosofia como uma experiência do pensamento, não acesso a conhecimentos prontos. Os estudantes devem praticar; a sala de aula deve ser um laboratório”, afirma.
Promover o pensamento livre e ativo enfrenta alguns obstáculos no ensino médio, como a cobrança de conteúdos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e a pouca variedade de livros disponíveis no PNLD, que acabam por padronizar a disciplina. Além disso, o ensino de filosofia se baseia predominantemente em autores europeus. Mas há respostas em curso.
— Recentemente houve um esforço interessante do pensamento africano, que é radicalmente diferente — relatou o professor da Unicamp.
Ainda que seja uma iniciativa “localizada”, Gallo vê a novidade com otimismo, indicando que estamos a caminho da diversidade. E também considera que a inclusão da filosofia e da sociologia no Enem e no PNLD demonstra a valorização desses conhecimentos.