NOTÍCIA
Estudar não é produzir, mas produzir-se como capaz de produzir
Publicado em 08/03/2016
As pesquisas de Bourdieu e Passeron, desenvolvidas a partir da década de 60, tornaram-se referência no campo da sociologia da educação. Em geral, seus nomes aparecem vinculados às investigações acerca dos mecanismos pelos quais as instituições escolares tendem a reproduzir as desigualdades econômicas, transformando a herança cultural de uma classe em capital social que rende privilégios na progressão da vida escolar. Embora central em obras como Os herdeiros ou A reprodução, esse aspecto não deveria cegar seus leitores para a ampla riqueza de ideias e perspectivas que se pode encontrar na obra desses dois grandes sociólogos franceses.
Tomemos um breve exemplo, extraído de sua primeira obra, publicada em 1964. Nela, ao investigar a origem social e o modo de vida dos estudantes franceses, os autores chegam à conclusão de que “para o estudante, fazer é somente se fazer”, pois o produto desse processo formativo – se assim a ele podemos nos referir – não é um algo tangível, mas a constituição de um alguém. Daí por que “estudar não é criar, mas criar-se, no melhor dos casos, como criador de cultura, ou na maioria dos casos, como utilizador ou transmissor advertido de uma cultura criada por outros… Geralmente, estudar não é produzir, mas produzir-se como capaz de produzir”. Na lucidez dessa afirmação há pelo menos dois aspectos cruciais que costumam passar despercebidos aos olhos dos que estudam e pensam a educação.
O primeiro, na contramão das tendências pedagógicas contemporâneas, é a constatação de que, de um ponto de vista sociológico, a criança e o estudante não são seres acabados, mas em formação (que ainda estão a se fazer), e como tal devem ser concebidos por aqueles que os educam. Não se trata de uma ideia nova, mas antes da recuperação de uma constatação óbvia que as pretensões de cientificidade de certos discursos pedagógicos quase nos fazem esquecer: a criação da infância e da juventude como tempos de formação só faz sentido se as concebermos como etapas intermediárias e voltadas a um fim que se situa fora delas mesmas. Claro que, de outras perspectivas, isso pode ser menos verdadeiro ou interessante. Mas para um professor, a criança e o jovem são seres dotados desse privilégio (ou mesmo luxo): ter um tempo no qual o que têm a fazer é “criar-se” ou “produzir-se como capaz de produzir”. Não é outro, aliás, o significado original do termo “skholé”: um tempo de adiamento, de ócio, de liberação da produção de bens de uso ou consumo em favor da possibilidade de constituição de um alguém que, além de ser capaz de produzir coisas novas, também deverá se produzir como um novo alguém.
O segundo aspecto é que esse tempo de formação é a oportunidade de entrar em contato sistemático com uma herança simbólica – linguagens e objetos da cultura – que exige familiaridade e prática para que a ela venhamos, eventualmente, adicionar algo de próprio e pessoal. Isso implica que a criação
do novo decorre sempre da lenta e cuidadosa apreensão das formas de produção dos objetos da cultura. Muitas vezes o culto fácil e irrefletido da criatividade estudantil simplesmente esconde a exigência de familiaridade com as diversas linguagens presentes na cultura escolar e universitária. O ocultamento desses aspectos, como lembram Bourdieu e Passeron, alimenta a ideologia do dom e cria a ilusão de que aquilo que é obtido por meio de uma longa e reiterada prática social apareça como o florescimento de algo espontâneo e natural. Nada poderia ser mais perverso com aqueles que, por contingência do destino social, se encontram privados dessa familiaridade. É dessa forma que discursos aparentemente libertários cooperam para que as desigualdades não só se perpetuem como se legitimem aos olhos de nossas sociedades.