Retorno é também um desafio para as escolas, que não sabem como lidar com esses alunos
Publicado em 09/06/2015
Aula na Fundação Casa: é mais fácil aprender lá dentro do que do lado de fora, dizem os que já saíram |
Ainda na escola, o adolescente G.I. envolveu-se com o tráfico de drogas, pois, segundo ele, necessitava de dinheiro para ajudar a família a sobreviver. Flagrado pela polícia, ficou oito meses internado na Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), onde concluiu o segundo ano do ensino médio. Após sair do período de internação e em cumprimento de medida de liberdade assistida, o jovem precisava voltar a estudar, solicitando retorno à escola que frequentava antes de entrar em conflito com a lei. Após ter a matrícula negada, encontrou vaga em outra escola, onde permaneceu por somente cinco dias, até receber ameaças de morte da polícia. Com isso, após buscar vagas durante cinco meses, G.I. conseguiu entrar em outra instituição, onde estuda há três semanas. Hoje com 18 anos recém-cumpridos, o adolescente garante que concluirá o ensino médio em 2015, mesmo diante das dificuldades que enfrenta no cotidiano letivo.
G.I. é um dos muitos adolescentes brasileiros que, após passarem um período cumprindo medida socioeducativa, tentam retornar à escola. Os dados de jovens que estão em escolarização em semiliberdade ou em medidas socioeducativas em meio aberto, porém, não são detectáveis no Censo Escolar da Educação Básica, uma vez que se referem a matrículas realizadas em escolas da rede pública que, conforme prescrição prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não identificam tais adolescentes.
No meio escolar, entretanto, a realidade é outra. “Logo no meu primeiro dia de aula a diretora entrou na sala e contou a todos os presentes sobre minha situação. Com isso, até hoje, estou isolado da turma”, diz G.I. O retorno ao ambiente escolar não é fácil nem para os adolescentes, nem para a escola. Entre as dificuldades estão a recusa, aberta ou velada, da matrícula, problemas no trato com os professores e dúvidas da gestão sobre como tratar com esses adolescentes.
Relação conflituosa
A Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescentes que pratiquem ato infracional. A lei estabelece o prazo de um ano aos órgãos responsáveis pelo sistema de educação pública e às entidades de atendimento para garantir a inserção de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa na rede pública de educação, em qualquer fase do período letivo, contemplando as diversas faixas etárias e níveis de instrução. O artigo 28 da mesma Lei responsabiliza gestores, operadores e seus prepostos e entidades governamentais “no caso do desrespeito, mesmo que parcial, ou do não cumprimento integral às diretrizes e determinações” previstas.
De acordo com Maria Lúcia de Lucena, coordenadora de programa social da Fundação Criança, de São Bernardo do Campo, muitas famílias encontram dificuldades para garantir a matrícula escolar dos jovens, ou devido à superlotação das salas de aula, ou por atitudes discriminatórias da equipe gestora, que os coloca em listas de espera. “O Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE) tem constatado, no acompanhamento aos adolescentes em conflito com a lei, que suas experiências escolares são permeadas de mudanças de escolas, dificuldades de aprendizagem, conflitos com professores e colegas, expulsões, estigmatizações, rotulações e violações de direitos”, diz Lúcia.
Conforme ela, esses aspectos levam ao baixo desempenho e, consequentemente, ao enfraquecimento do vínculo escolar, mediante o aumento do sentimento de perseguição e de exclusão por parte dos adolescentes, o que também decorre da frustração em relação à capacidade para aprender.
Na sua pesquisa de mestrado “O jovem autor de ato infracional e a educação escolar: significados, desafios e caminhos para a permanência na escola”, Aline FávaroDias, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), pesquisou casos de jovens em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto (benefício concedido a autores de atos infracionais contra o patrimônio, como roubo, furto e envolvimento com o tráfico de drogas). Psicóloga de formação, Aline, que sempre trabalhou com jovens infratores, diz que as características comuns a esses adolescentes são a dificuldade em lidar com regras, com a frustração e em estabelecer rotinas. O envolvimento com drogas também é frequente, afetando a capacidade de concentração.
São adolescentes, portanto, que já apresentam dificuldades com a rotina escolar, mesmo antes de serem flagrados em atos infracionais. Muitos deles já haviam se evadido da escola, antes da internação. Na pesquisa “Trajetórias escolares de adolescentes em conflito com a lei”, realizada por Marina Rezende Vazon, professora do departamento de psicologia da USP em Ribeirão Preto, e outros especialistas, identificou-se que, em 2002, um total de 51% dos adolescentes com medida de internação estavam fora da escola no momento da apreensão e 6% não eram alfabetizados, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça.
Roberto passou 24 anos sob custódia. Hoje é livre-docente da USP |
Em 2011, esses números aumentaram, respectivamente, para 57% e 8%. De acordo com o levantamento, os aspectos da vivência escolar mais fortemente associados à conduta infracional incluem o baixo desempenho, a relação conflituosa com pares e professores, e punições reiteradas e severas. Nessa linha, as trajetórias escolares são marcadas por processos explícitos ou implícitos de exclusão do ambiente escolar, nos quais se destacam a não aprendizagem, problemas disciplinares e punições recorrentes.
Marina lembra também que jovens em conflito com a lei costumam apresentar defasagem idade-série de, ao menos, três anos, mostrando que eles não realizaram aquisições mínimas de conhecimento. “Ao não conseguir o aprendizado cognitivo desejado, os jovens se desvinculam da instituição, tornando-se mais vulneráveis à ação policial”, acredita Marina. “Estatisticamente, os problemas escolares influenciam mais os meninos de comportamento complicado do que as variáveis familiares”, ressalta a pesquisadora.
Atenção especial
Quando participou de um assalto que lhe rendeu uma medida socioeducativa de oito meses de internação, D. já tinha se evadido da escola. Também internado durante oito meses, o jovem concluiu o primeiro ano do ensino médio e deixou a Fundação Casa no dia 16 de dezembro de 2014. Hoje com 17 anos e em medida de liberdade assistida, D. acaba de conseguir vaga em uma escola, após mais de cinco meses de espera. Ele considera que foi mais fácil aprender durante a internação do que nas escolas regulares pelas quais passou. “Na Fundação a pessoa mais respeitada é o professor, pois ele não somente dá aulas, mas também nos incentiva a viver”, afirma.
O ECA determina que as unidades de internação têm o dever de promover a escolarização, educação profissional, atividades culturais, esportivas e de lazer. A medida socioeducativa pode ser cumprida em meio aberto ou com privação de liberdade. O jovem em cumprimento da medida de internação recebe formação dentro da unidade – seja ensino fundamental ou médio. Na internação, a responsável pela educação formal dos adolescentes é a Secretaria de Estado da Educação e os jovens recebem as mesmas propostas curriculares dos cursos de ensino fundamental e médio regulares da rede de ensino estadual. “Se estiver em cumprimento de semiliberdade, prestação de serviço à comunidade ou liberdade assistida, o aluno deve ser vinculado a uma escola próxima do seu cotidiano de vida”, explica Maria Lúcia.
Maria Lúcia, da Fundação Criança: famílias relatam dificuldades para matricular seus filhos |
De volta à escola regular, D. considera a “desmotivação docente” e “posturas autoritárias”, como os principais entraves para que aprenda. Ele reclama da falta de atenção mais individualizada do professor no cotidiano das aulas, e de uma postura da escola com a qual não se sinta desrespeitado ou constrangido.
G.I. também compara suas duas experiências escolares, dentro e fora do período de internação. “Quando eu fiquei internado era obrigado a estudar. Era mais fácil aprender lá dentro do que aqui fora”, compara. O adolescente relata dificuldades no trato com os professores, que – com exceção do docente que leciona artes – não se mostram abertos a ajudá-lo em suas dúvidas e problemas com o conteúdo das aulas, relata. Com seis pessoas vivendo em sua casa – todas desempregadas – G.I. optou por estudar à noite para trabalhar de dia. A ideia, explica ele, é encontrar emprego o quanto antes. “Se eu esperar terminar a escola para começar a trabalhar, minha família morre de fome”, afirma.
Em sua pesquisa, Aline Fávaro, da UFSCar, detectou entre as dificuldades reportadas pelos jovens entrevistados, problemas no trato com os professores como agressões físicas e verbais, insensibilidade às suas características individuais, comportamento autoritário, além da percepção de que as escolas gastam mais tempo com medidas punitivas do que para incentivar seu aprendizado.
Estereótipos
Ficar na escola, portanto, pode ser um desafio maior do que voltar para ela. Dados da Fundação Criança mostram que, no comparativo de 2010 a 2014, entre os adolescentes atendidos em meio aberto se observou um aumento progressivo no grau de escolaridade, porém a distorção idade-série aumentou. “Esse indicador da distorção é importante, pois mostra a fragilidade do sistema educativo quanto a sua capacidade de reter alunos”, critica Maria Lúcia. Segundo ela, dos 851 adolescentes atendidos pela Fundação em 2014, somente três concluíram o ensino médio e dois entraram no ensino superior.
Biancha Angelucci, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) – que pesquisa a escolarização das pessoas que estão excluídas do sistema escolar, entre elas os moradores de rua, as pessoas com deficiências mentais e físicas e os adolescentes em conflito com a lei -, defende que, para garantir o retorno escolar desses jovens, o primeiro passo é evitar que o seu desenvolvimento seja condicionado pela situação de conflito com a lei. “A escola é o espaço onde o jovem tem uma oportunidade única de reconstruir sua identidade. Mas, para isso, os gestores devem ressaltar outras características desse estudante, ajudando-o a criar um novo projeto de vida.” Para ela, pesam sobre esses jovens estereótipos generalizados, segundo os quais o conflito com a lei é algo inerente ao seu caráter e, portanto, não pode ser mudado.
Biancha argumenta que o acolhimento dos jovens em conflito com a lei deve estar previsto no projeto político-pedagógico da instituição, que precisa discutir com a comunidade o que significa receber esses adolescentes. “Muitas famílias [da comunidade escolar] se opõem à ideia, pois sentem um medo infundado de que os seus filhos sejam influenciados pelos jovens reinseridos. A escola deve trabalhar esses problemas”, pondera.
O desafio do retorno à escola diz respeito, portanto, não somente à busca por vagas em locais dispostos a acolhê-los, como também a criar condições que permitam ganhar sua confiança, de maneira que ele escolha permanecer naquele contexto, mesmo após o cumprimento da medida socioeducativa. “Muitos desses meninos viveram um drama pessoal no decorrer do seu processo de aprendizagem e trazem para si a responsabilidade pelo seu fracasso escolar”, argumenta Marina, da USP.
Para além da intervenção
E como é possível conquistar essa confiança? “Diretores e coordenadores pedagógicos precisam conhecer os desejos e necessidades desses adolescentes, criando vínculos com esses meninos e suas famílias, por meio de um trabalho em rede, já que nenhum equipamento conseguirá, sozinho, intervir de fato na vida desses garotos”, defende Gabriela Gramkow, pesquisadora e doutora em psicologia social que trabalhou com adolescentes em cumprimento de medidas de semiliberdade.
Gabriela Gramkow: os gestores precisam criar vínculos com esses adolescentes |
João Clemente de Souza Neto, coordenador de uma entidade sem fins lucrativos ligada à Pastoral do Menor na região episcopal da Lapa – que acompanha o cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto -, explica que, quando a ONG recebe um jovem, o primeiro passo é ajudá-lo a ter consciência da sua situação. Com base nesse processo, eles o apoiam a construir um projeto de vida, no qual a escola pode ou não entrar. “Muitos meninos apresentam dificuldades de convivência. Então, antes de garantir o retorno à escola, precisamos cuidar dessa parte social”, detalha. Uma crítica de Neto ao sistema educacional é que as instituições separam a educação do mercado de trabalho, algo que, acredita, dificulta o interesse desses alunos que, em geral, precisam trabalhar.
Apesar do panorama complicado, no entanto, há situações bem-sucedidas de adolescentes que conseguiram retornar à normalidade pelo caminho da educação. Um desses casos é o de Tamara Souza Rodrigues, moradora de Niterói e hoje com 21 anos, que cursava o primeiro ano do ensino médio quando se envolveu em uma briga com outra adolescente, três dias antes de cumprir 18 anos. Internada durante nove meses, cursou o segundo ano do ensino médio, concluindo a Educação Básica logo após o término da medida de privação de liberdade, por meio de um supletivo. Seu bom desempenho escolar chamou a atenção dos gestores do Degase (Departamento Geral de Ações Socioeducativas) do Rio de Janeiro, que acompanhavam o seu caso e a convidaram para trabalhar no projeto TV Degase, como funcionária. Tamara se prepara, agora, para prestar vestibular na área de direito, faculdade que pretende começar a cursar já no início de 2016.
A eficácia da educação
A importância da reinserção social de adolescentes que entraram em conflito com a lei pela via da educação também fica evidente na história de vida do professor Roberto da Silva, da Faculdade de Educação da USP. Silva passou, ao todo, 24 anos sob custódia em instituições do Estado, entre elas a antiga Febem (atual Fundação Casa). Ao deixar a instituição, já maior de idade, foi condenado a 36 anos por crimes diversos. Passou, então, a estudar direito na prisão, conseguindo reduzir sua pena para um quinto do tempo previsto. Já em liberdade, graduou-se em pedagogia, fez mestrado e doutorado, desenvolvendo a tese “A eficácia sociopedagógica da pena de privação de liberdade”, em 2001. Em 2009, obteve a livre-docência na USP, instituição em que, hoje, coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação em Regimes de Privação da Liberdade. A finalidade do grupo é fomentar o desenvolvimento de políticas públicas para expansão da educação nas prisões e o aprimoramento das medidas socioeducativas aplicadas a adolescentes.
Com toda essa bagagem, a principal crítica de Silva ao sistema de reinserção escolar desses jovens diz respeito aos procedimentos na triangulação Justiça-Secretaria de Educação-Escola, que não dialogam, de maneira que as instituições não sabem o conteúdo pedagógico que o jovem estava aprendendo antes e depois da internação. De acordo com ele, no tempo que o adolescente passa internado, se entende que ele é aluno da Fundação Casa, algo que considera equivocado. “A Fundação Casa deveria trabalhar de forma complementar ao que a escola já faz, e não pretender substituí-la no período que ele passa internado”, defende. Com isso, ele argumenta que, após a privação da liberdade, o reatamento dos laços escolares deve ocorrer com a escola de origem do jovem e não com outra instituição.
Em um de seus trabalhos de pesquisa, Aline Fávaro Dias identificou que as escolas não possuem estrutura e capacitação para trabalhar com esses jovens. Assim, nas conversas com as equipes gestoras, escutou que elas sabiam que os adolescentes em conflito com a lei deveriam ser tratados da mesma forma que o restante da classe, porém era inevitável que eles fossem mais observados e, algumas vezes, tratados como perigosos.
Acordos cruéis
Silvia Helena Seixas – responsável por implantar a escola de Ensino Fundamental na Fundação Casa de Ribeirão Preto em 2000 e coordenadora do Instituto Plural Vila Bela, que trabalha com egressos de medidas socioeducativas – observa que essa falta de preparo tem feito as escolas enfrentarem os desafios na área por meio de acordos cruéis. Assim, algumas permitem, por exemplo, que esses jovens entrem com drogas nas aulas, desde que não se envolvam em brigas. Outras estabelecem acordos com a polícia, que passa a entrar na escola para dar broncas nos meninos com problemas de comportamento. O terceiro tipo de acordo – que ela considera o mais cruel – é quando o gestor se compromete a dar frequência ao aluno, mesmo que ele não compareça. A reportagem não pôde entrevistar diretores, já que, segundo o artigo 247 do ECA, os diretores de escola não falam sobre a situação dos alunos com histórico de conflito com a lei.
Com o objetivo de combater esses problemas, o Instituto criou um projeto para orientar diretores de escolas sobre como lidar com o assunto. Silvia conta que o pontapé para a criação da iniciativa foi quando a diretora de uma escola da cidade – contra quem o Instituto já havia, inclusive, registrado boletim de ocorrência, por conta das negativas em receber meninos com problemas de comportamento – a procurou, dizendo que não sabia como atuar com esses adolescentes. Assim, a base do projeto envolve atividades de capacitação sobre como prevenir atitudes discriminatórias.
Também atenta à falta de preparo docente, a Universidade de Brasília (UnB) e a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) do Ministério da Educação (MEC) criaram, em 2014, o Curso de Docência na Socioeducação, voltado a professores da rede pública brasileira. Com carga horária de 216 horas – sendo 200 horas realizadas na modalidade a distância e 16 horas presenciais – o treinamento envolve sete eixos temáticos, que visam ressignificar e revisar as práticas docentes no contexto dos jovens em cumprimento de medidas socioeducativas.
Investimentos em qualificação também são o eixo central de uma iniciativa da prefeitura de São Paulo que, por meio da elaboração do Simase (Plano Decimal de Atendimento Socioeducativo do Município de São Paulo), prevê a oferta de referências aos educadores, de maneira a garantir o atendimento adequado a alunos com esse perfil. Adriana Watanabe, coordenadora do Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem, também conta que a prefeitura pretende implementar uma lei para criar a Comissão de Mediação de Conflitos nas escolas da Rede Municipal de Ensino de São Paulo, com o objetivo de atuar na prevenção e resolução de conflitos que envolvam alunos, professores e servidores da comunidade escolar. “As situações de conflito no interior das escolas precisam ser mediadas pela equipe escolar e, nos casos mais complexos, é possível buscar o apoio dos serviços da Rede de Proteção Social em cada território.”