NOTÍCIA

Edição 217

No limite

Pesquisas recentes mostram a influência dos estados emocionais para o processo de aprendizagem; hora de a escola criar mecanismos para lidar com os sentimentos, tanto de alunos, quanto de professores

Publicado em 12/05/2015

por Débora Pinto

© iStockphoto
As disfunções ou patologias mais graves que envolvem a emoção podem ocorrer desde o pré-natal

Indisciplina, raiva manifesta em agressividade, desatenção. O emaranhado de comportamentos advindos da subjetividade dos alunos tem efeito bumerangue: provocam outras emoções no professor e podem desencadear frustração, perda de ânimo, impotência. Como um dos lugares privilegiados para as interações presenciais na contemporaneidade, a escola é o ambiente perfeito para o engatilhamento de processos emocionais. O que não se sabia, até agora, é o quanto essas emoções influenciam no aprendizado, seja de forma negativa, ou positiva.

A neurociência tem trazido informações importantes para entendermos a relação entre comportamento e função cerebral. Sabe-se hoje que perturbações que envolvem a sensorialidade, a percepção, o aprendizado, e a capacidade de lidar com problemas estão muitas vezes associadas às deficiências do relacionamento interpessoal, insegurança e baixa autoestima.

Segundo estudos do professor emérito de Psicologia Infantil e Psicobiologia da Universidade de Edimburgo, Colwyn Trevarthen, e do professor do departamento de Psiquiatria e Ciências do Comportamento da Universidade da Califórnia, Allan Schore, as disfunções ou patologias mais graves que envolvem a emoção, a comunicação e o aprendizado podem ocorrer precocemente, desde o pré-natal, nos primeiros estágios do desenvolvimento do embrião. Isso quer dizer que muitas das alterações psicológicas da infância e do estado do adulto podem ter sua origem nos primeiros estágios do desenvolvimento do cérebro. Segundo a denominação de Colwyn Trevarthen, essas patologias poderão integrar os Distúrbios de Motivação ou da Empatia, que em algumas situações só se manifestam na adolescência, por ocasião do processo de poda de sinapses.

Um relatório da Academia Americana de Pediatria apresenta um quadro de eco-bio-desenvolvimento neuropsíquico que ilustra como o início de experiências e influências ambientais pode deixar uma assinatura duradoura sobre as predisposições genéticas que afetam a arquitetura cerebral emergentes para a  saúde a longo prazo. O relatório também examina extensa evidência dos impactos negativos do estresse tóxico, oferecendo pistas sobre como mecanismos causais que ligam o contato com adversidades desde cedo podem provocar impedimentos posteriores na aprendizagem, no comportamento, e no bem-estar, tanto físico, quanto mental.

O conceito de estresse tóxico foi desenvolvido pelo Centro de Desenvolvimento da Criança, da Universidade de Harvard, para explicar como a criança que aciona com frequência seu sistema de reação ao estresse, sem contar com um adulto que a acolha e acalme, pode sofrer de uma série de problemas emocionais no futuro. Tirando os motivos mais drásticos de situações de abusos físicos, fome, ou violência doméstica, os pesquisadores indicam que certos acontecimentos corriqueiros são os principais desencadeadores do estresse tóxico: frustração ou aflição frequentes, como brigas na escola ou na família, crítica e a desaprovação dos pais, excesso de atividades e o bullying.

Além disso, as pesquisas também têm chamado a atenção para as características sociais às quais a infância está submetida na contemporaneidade. A preocupação excessiva dos pais com seus filhos, e a consequente agenda de compromissos diários aos quais as crianças são submetidas cada vez mais cedo, estão tornando as crianças estressadas, o que, a longo prazo, pode trazer consequências para a saúde física e emocional. Estudo da pesquisadora Ana Maria Rossi, presidente da International Stress Management Association no Brasil (Isma-BR), realizado com 220 crianças, entre 7 e 12 anos, revelou que oito em cada dez pais foram atrás de ajuda profissional por causa da alteração de comportamento de seus filhos.

Os estudos do diretor do programa de Liderança em Educação Urbana da Universidade de Colúmbia, nos EUA, Brian Perkins, também têm apontado para as influências do ambiente no aprendizado. Há quatro anos acompanhando escolas públicas em favelas cariocas, e em outros países com zonas de conflitos, como China, África do Sul e Índia, Perkins aponta como a violência  é prejudicial ao processo de aprendizagem. Segundo o pesquisador, quando a adrenalina entra no sistema cerebral, faz o córtex se desligar, tornando impossível processar informações com essa parte. É na área do córtex cerebral que ocorrem as funções da linguagem e das habilidades processuais e analíticas. Se a mente da criança está ligada ao medo e à sobrevivência ao longo do dia, ela não está pensando.

“A ciência mostra que o processo de aprendizagem é afetado negativamente por situações de medo. É preciso resolver a violência para que haja um ambiente favorável ao estudo”, afirmou o pesquisador em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em abril último.

Em entrevista à revista Educação em 2013 (Ed. 196), Perkins apontou que, em todos os países em que pesquisa, percebe pelo menos uma característica em comum entre os professores que encontra: uma grande apatia. A maioria, diz ele, está sem estímulo para se aprimorar e sem sentir prazer em dar aulas.

Assim se dá o efeito bumerangue: ao mesmo tempo que percebem esses sintomas na escola, os professores se tornam vítimas deles.

Chama o psicólogo

A percepção dos professores de que algo não vai bem no desenvolvimento psicológico das crianças foi detectada pela pesquisa A visão dos professores sobre a educação no Brasil,  realizada pela Fundação Lemann e divulgada em março último. A pesquisa ouviu mil professores de escolas públicas do Ensino Fundamental I e II de zonas urbanas de todo o país. Dentre outros dados, foi levantada uma lista de 19 fatores que precisam ser enfrentados com mais urgência na visão dos educadores. Para 21% deles, a “falta de acompanhamento psicológico para alunos que precisam” é apontada como o fator mais urgente para se tratar na escola. O item foi mencionado por 38% dos entrevistados entre os três fatores mais urgentes a serem resolvidos pela educação no Brasil. Em consequência, a segunda questão mais destacada pelos professores foi a indisciplina dos alunos  (mais urgente para 14% e dentre as três mais urgentes para 34%).

“Quando um professor dá à figura do psicólogo toda essa importância acredito que está, na verdade, pedindo socorro diante de uma diversidade às vezes vertiginosa de comportamentos, sentimentos e emoções”, aponta a psicóloga, psicopedagoga e diretora-geral do Colégio Graphein, em São Paulo (SP), Nívea Maria de Carvalho Fabrício. Para ela, antes de pensar em um especialista externo ao cotidiano escolar intervindo diretamente com os alunos, é necessário investir na capacitação dos educadores, tanto para reconhecer e compreender a importância das emoções na aprendizagem, quanto para deixá-los mais aptos a agir. “É claro que em alguns casos será necessária a ajuda de um especialista externo. Mas até para que isto seja feito da melhor maneira é fundamental uma consciência adequada sobre os aspectos mais subjetivos dos alunos”, sinaliza Vera Zimmermann, psicóloga, psicanalista e coordenadora do Centro de Referência da Infância e Adolescência (CRIA), da Unifesp.

A relação entre professores e psicólogos traz como pano de fundo o embate entre o papel da escola e da psicologia – importante notar a influência da psicologia na educação e no entendimento sobre as crianças desde a segunda metade do século 20, principalmente a partir dos estudos do psicopedagogo Jean Piaget (1896-1980).

“É essencial em primeiro lugar compreendermos que o espaço escolar não é um local terapêutico. Isso significa que lidar com as emoções na escola não tem nada a ver com cuidar da saúde emocional individual das crianças e jovens. Não faria sentido, porque o professor não é o profissional capacitado para isso. Isso não quer dizer, porém, que ele não vá ter de lidar com as emoções dos alunos, já que elas estão presentes todo o tempo e vão influenciar diretamente no resultado do seu trabalho”, avalia Vera Zimmermann.

Essa distinção de papéis nem sempre se mostra tão clara, principalmente na relação com a comunidade. Professores e equipe escolar são muitas vezes vistos como especialistas capazes de orientar os pais nas dificuldades emocionais de seus filhos em casa. “Diversas vezes pais de alunos vinham nos procurar pedindo socorro por não saberem o que fazer diante de comportamentos dos filhos. Sentia uma pressão muito grande para ter respostas e apresentar soluções que estavam além do meu alcance”, relata Marcelo Lovato, psicólogo que recentemente deixou a sala de aula, após 15 anos como professor de língua estrangeira.

Lovato chegou a atuar como psicólogo dentro de ambientes escolares, realizando ambulatórios psicológicos para alunos e professores. “Depois de toda essa experiência, quando penso na questão das emoções na escola, a primeira coisa que me vem à mente é ‘e quem cuida do educador?’, relata. E lembra que este cuidar passa pela oferta de conhecimento sobre os caminhos para manejar as emoções em sala de aula –  o que ajudaria a diminuir a incidência, por parte dos professores,  de sentimentos  como a frustração, a impotência e a raiva.

Patologia ou comportamento

A consciência adequada sobre os aspectos subjetivos dos alunos se mostra especialmente frágil, de modo geral, na formação dos educadores brasileiros. “Os professores são apresentados de forma muito superficial aos aspectos do desenvolvimento emocional e sua relação com a aprendizagem. Com isso, correm o risco de não enxergar seus alunos de uma maneira integral – ou seja, como dotados de cognição e emoções”, aponta Maria Augusta Salin Gonçalves, filósofa, doutora em Educação pela UFRGS e autora, dentre outros livros, de Construção da identidade moral e práticas educativas (Papirus Editorial).

Essa defasagem na formação contribui para uma situação na qual, a menos que seja realizado um processo de capacitação e aprendizado contínuos, os profissionais podem ter sérias dificuldades  diante da demonstração de fragilidade emocional de um aluno, na hora de mediar conflitos ou para construírem, eles mesmos, sentimentos mais saudáveis em relação à sua atividade profissional.

Vale lembrar ainda que embora educadores não tratem diretamente da saúde de emoções e sentimentos individuais das crianças e jovens (papel do psicólogo e, em casos diretamente ligados à aprendizagem, do psicopedagogo), existe um campo considerável de ação a ser desempenhado por eles, sobretudo  no sentido de promover condições favoráveis à aprendizagem. Assim, raiva, ansiedade, medo, tristeza (dentre outros comportamentos) necessitam, sim, ser identificados e elaborados no dia a dia de professores e alunos.

Uma das dificuldades reais enfrentadas pelos professores, entretanto, é como identificar as fronteiras entre comportamento e patologia. “Um perigo que precisa ser evitado a todo custo é o de tratar como patologias comportamentos e atitudes que são naturais na relação dos alunos com a sua realidade escolar”, explica Elaine  Prodócimo, professora da Faculdade de Educação da Unicamp e pesquisadora da agressividade na escola.

Segundo ela, uma criança que não para sentada na cadeira pode apenas estar sentindo falta, por exemplo, de utilizar mais o corpo em suas atividades escolares – o que poderia ser sanado por profissionais da própria escola, a partir de conhecimentos da área da educação e do desenvolvimento. De um ponto de vista mais apressado, essa mesma criança poderia ser considerada portadora de algum distúrbio emocional, que só poderia ser tratado com a ajuda de um psicólogo. O limite é tênue, mas tentar clareá-lo é essencial.

Mesmo quando é necessária a intervenção de um especialista de saúde, o professor que tiver conseguido uma percepção mais clara do processo do aluno poderá oferecer informações valiosas, criando uma  parceria em prol do desenvolvimento desta criança ou jovem. “É importante que este clima de parceria também se estabeleça entre os profissionais dentro da escola – e que os educadores contem com espaço para discutir suas dúvidas e problemas relativos ao seu trabalho”, aponta Luciana Lapa, psicóloga, pesquisadora e orientadora educacional da Escola Stance Dual, em São Paulo (SP).

“Com mais preparo e clareza sobre como atuar, e contando com o respaldo de outros profissionais escolares na troca de experiências, o educador consegue, ele mesmo, observar-se com mais nitidez. E isso é importante para que ele possa trabalhar na árdua tarefa de manejar os próprios sentimentos, principalmente a frustração”, explica Regina Kastesckas, recém-aposentada após mais de 20 anos como professora e diretora de escolas públicas na cidade de Osasco (SP). A observação de Regina foi repetida por todos os educadores ouvidos pela reportagem: a frustração foi apontada por todos como o sentimento negativo que mais se mostra na relação do professor na rotina de seu trabalho. Para compreender essa intrincada linguagem dos sentimentos e das emoções nas relações que se estabelecem na escola, levantamos, nas próximas páginas, alguns exemplos de situações e indicações de propostas para manejá-las.

 Clima escolar
Atuar na capacitação de educadores em relação às próprias emoções e oferecer possibilidades de atuação assertivas em sala de aula são ações do projeto Cuca Legal, promovido em parceria entre a Universidade Federal de São Paulo e a Secretaria de Estado da Educação. Segundo a neuropsicóloga e educadora Adriana Fóz, uma das coordenadoras do projeto, a experiência em dezenas de escolas mostra que o processo de conscientização toca os educadores principalmente quando eles percebem a  relação direta e concreta entre as emoções e o aprendizado. “Nós fazemos questão de oferecer dados e estudos que deixam bastante claro que a ansiedade, por exemplo, tende a rebaixar a capacidade de atenção e, consequentemente, dificultar a assimilação de conteúdos”, explica Adriana.

A apresentação de dados científicos e que partem da concretude das reações cerebrais é importante, segundo a especialista, principalmente porque ainda é possível verificar uma certa resistência em assumir os  afetos e emoções como uma parte naturalmente integrante do cotidiano escolar. “Os comportamentos que dificultam o clima das aulas – como as agressões verbais e indisciplina – são geralmente os mais associados às emoções”, explica Adriana.  Ainda segundo a especialista, é necessário lembrar que mesmo com um clima harmonioso, as emoções e sentimentos poderão interferir positivamente ou negativamente no processo de aprendizagem.

O clima escolar, porém, tem extrema importância e sua construção também tem conexão direta com o universo emocional. O aspecto social da escola (no qual crianças e jovens compartilham com pares e figuras de autoridade, agindo na coletividade) faz com que ela seja palco natural dos mais variados tipos de conflitos. “As crianças e jovens vivem situações emocionais diversas com as quais nem sempre sabem lidar muito bem. O fundamental é ajudar no esclarecimento sobre esse mundo interior mais subjetivo, trazendo mais consciência para esse aluno. Ele precisará entender, de acordo com a sua idade, como ajudar a construir um ambiente coletivo que seja saudável para todos – e que para isso é necessário cuidar das relações e, consequentemente, das próprias emoções” , aponta a doutora em psicologia escolar Luciana Fioravante, diretora escolar do Colégio Equipe, em São Paulo (SP).

Autor

Débora Pinto


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