CAPA MERCADO | Edição 197 Falta de planejamento assumida pelo governo na concessão do programa de financiamento estudantil deixa instituições de ensino à mercê da busca por novas soluções para melhoria da qualidade e expansão por Udo Simons Mais de quatro meses após o Ministério […]
Publicado em 27/04/2015
CAPA MERCADO | Edição 197
Falta de planejamento assumida pelo governo na concessão do programa de financiamento estudantil deixa instituições de ensino à mercê da busca por novas soluções para melhoria da qualidade e expansão
por Udo Simons
Mais de quatro meses após o Ministério da Educação divulgar a portaria normativa que altera a regulação do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), gestores do setor educacional superior particular ainda lidam com um cenário de incertezas na administração de suas instituições. Nos últimos anos o Fies foi importante instrumento de inclusão de alunos nas faculdades e uma das principais garantias de aporte financeiro para as instituições. Quando – da noite para o dia, sem aviso prévio –, as regras mudaram no final do ano passado, o segmento foi como que tomado de assalto. A súbita mudança nas regras de acesso ao financiamento surpreende, sobretudo, pelo fato de o programa ter sido o principal responsável pela manutenção, até então, do crescimento da taxa de matrículas no ensino superior.
Um dos primeiros resultados do impacto gerado pelas alterações é identificado entre milhares de pessoas que desejam ingressar numa faculdade. Acima de tudo, na população com menor poder aquisitivo, principal grupo beneficiado pelo programa, e que a partir de agora precisa atingir uma nota mínima para se habilitar ao financiamento.
Do ponto de vista dos gestores e mantenedores das instituições, o inesperado aconteceu pela forma como os fatos se desdobraram. Apenas três meses antes da divulgação das modificações, em setembro de 2014, o governo federal comemorava o número de estudantes matriculados no ensino superior: 7.526.681 alunos, de acordo com os dados do Censo da Educação Superior 2013, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Retrospecto otimista
À época, o cenário era oportuno para declarações oficiais otimistas, estimuladas ainda pelo acirrado período da campanha eleitoral. O então ministro da Educação, Henrique Paim, destacava em entrevistas à mídia que o Brasil estava num forte momento de expansão no sistema educacional. Paim chegou a afirmar, em reportagem publicada pelo Portal Brasil, site oficial de comunicação do governo, que a educação superior vivia um “(…) processo acelerado de expansão, com forte inclusão”.
E mais: todas as estatísticas publicadas reforçavam o compromisso do governo com as metas do Plano Nacional de Educação (PNE), com previsão, entre outros itens, de elevação da taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% e a taxa líquida para 33% da população entre 18 e 24 anos. Para 2020, ano estipulado para cumprimento das metas, as instituições governamentais trabalham com a perspectiva de ter 10 milhões de pessoas efetivamente matriculadas no ensino superior.
Direito de estudar
“Me sinto traído”, resume Afonso Placca Filho, mantenedor da Faculdade Orígenes Lessa (Facol), localizada na cidade de Lençóis Paulista. A instituição, fundada há 16 anos, exemplifica na prática os efeitos das mudanças no programa de financiamento estudantil. São as instituições de pequeno e médio porte, localizadas fora dos centros urbanos, as mais atingidas pelo corte do Fies.
Com 1.200 alunos, a Facol emprega 180 funcionários e é referência no ensino superior na região onde se situa. “Atendemos estudantes de nove cidades num raio de até 50 quilômetros de distância”, comenta Placca. Majoritariamente, os alunos matriculados na instituição precisam recorrer ao financiamento estudantil federal para poder custear sua formação. De acordo com ele, 80% dos estudantes da Facol são vinculados ao programa. “As mudanças atingiram frontalmente o direito de estudar dos alunos. Já tínhamos começado o processo de ingresso nos cursos quando, de repente, as regras mudaram”, conta. “E agora? Os novos alunos matriculados devem fazer o quê? Abandonar sua formação? Desistir de seus planos? Eles contavam com o Fies para pagar suas mensalidades”, complementa.
É a partir dessa dinâmica que surge o sentimento de traição, a que Placca se refere. Ele alega ter “assumido a bandeira” do Fies quando o governo federal iniciou o programa. De acordo com ele, são as condições do financiamento, com juros baixos, que possibilitam trazer alunos de condições financeiras menos favorecidas para a sala de aula. Na inexistência do crédito é preciso estabelecer outras maneiras para o custeio dos estudos. “Estudamos alternativas para viabilizar a entrada de novos alunos. É preciso resolver essa questão”, adianta.
Entre as medidas aventadas por Placca e sua equipe para permitir que alunos de baixa renda se mantenham na faculdade está a possibilidade de estabelecer o pagamento das mensalidades no dobro do tempo de duração do curso. Além disso, haverá uma análise socioeconômica dos alunos para identificar aqueles que necessitam de descontos para o pagamento das mensalidades. Para isso a instituição também deverá investir em estudos de segurança jurídica para determinar fiadores ou outros artifícios de garantia dos pagamentos. “Vamos nos sacrificar para mantermos nossos alunos”, garante.
Custo do investimento
A oferta de financiamento estudantil é uma prática limitada na iniciativa privada brasileira. Há poucas empresas especializadas com presença nacional ou de
atuação regional que concedem esse tipo de crédito a alunos do ensino superior. Além disso, as regras de atuação acabam deixando de fora uma grande gama tanto de instituições como de alunos, seja devido ao porte dos estabelecimentos ou pela baixa renda dos beneficiados.
O setor bancário também encontra dificuldade em concorrer com as taxas de juros oferecidas pelo governo federal. “É impossível para um banco competir com a taxa de juros de 3,4% ao ano do Fies. O custo do dinheiro é maior”, comenta Daniel Mitraud, superintendente de Crédito Educativo do Santander.
De acordo com Mitraud, o desenho para viabilizar produtos competitivos pelos bancos nesse segmento é difícil pelas variantes envolvidas. Entre elas, as poucas fontes de renda dos alunos. Muitos sequer trabalham e ainda são dependentes econômicos dos pais, que em muitos casos também têm condições limitadas de renda. Há, ainda, a evasão. Qual garantia o banco teria para financiar alguém que compra um serviço o qual a instituição financiadora não consiga alienar em caso de quebra de contrato, como acontece com o financiamento de carros? “O investimento não compensa, ao se analisar o custo versus o benefício. O Fies foi criado como política social, política de inclusão ao ensino.”
Porém, a despeito das dificuldades os bancos estão no mercado com linhas de crédito com juros bancários com variação, de forma geral, de 1,20% a 6% ao mês. Os prazos para o pagamento oscilam de 30 meses a 48 meses. Algumas instituições fixam o valor máximo de financiamento em R$ 30 mil; outras analisam histórico do solicitante, caso a caso, para fixar valor.
O Santander, apesar de não ter uma linha de crédito estudantil para a graduação, financia cursos de pós-graduação e MBAs nacionais. O Crédito Educação Continuada pode ser usado para financiamentos em instituições de ensino conveniadas ao banco e prevê até 100% de financiamento do valor do curso, com prazo de pagamento de até 36 meses.
Além disso, no início do ano, após o novo cenário de financiamento federal, o Santander criou o seguro educacional, um produto comercializado às instituições do ensino superior, com funcionamento semelhante ao de uma apólice coletiva de seguro. A instituição acresce um valor à mensalidade do aluno que queira contratá-lo e, caso ele perca sua fonte de renda, o seguro pode ser acionado garantindo o pagamento da mensalidade por um período de até seis meses. “É uma forma de gerar tranquilidade para a instituição de ensino e para os alunos”, explica o superintendente do banco.
Antevisão do futuro
Estudos acadêmicos apontam que desde 1980 a curva de matrículas, ascendente ou descendente, no setor privado do ensino superior, responde à economia, em geral, com até dois anos de atraso aos acontecimentos dos fatos. Isso quer dizer, se a economia hoje vai bem, num período de dois anos vê-se o aumento de pessoas ingressando no ensino superior. Por outro lado, no momento em que a economia do país vai mal, as pessoas tendem a abandonar ou desistir de se matricular na formação superior. Isso acontece pela percepção imediata de que o retorno no investimento educacional talvez, possa não valer tanto a pena. Afinal, se a economia não cresce ou está estagnada são menores as oportunidades de emprego. Há menos oferta de vagas. Além disso, existe a pressão do pagamento das contas do cotidiano, aluguel, comida, prestação de carro, plano de saúde. Portanto, é preciso focar o trabalho, se dedicar a manter a fonte de renda para assegurar o bem-estar e a vida prática.
Para o especialista em políticas relacionadas ao ensino superior Renato Hyuda de Luna Pedrosa, do Instituto de Geociências da Unicamp, ao atual cenário de complicação econômica se acrescenta o fato de o governo federal ter errado nas prioridades de desenvolvimento no sistema educacional. “A expansão do ensino superior foi artificial. O governo errou. Deveria ter qualificado melhor os níveis fundamental e médio”, afirma.
Para Pedrosa, a formação no ensino médio vem capacitando pessoas deficitárias educacionalmente. Os colégios apenas repassariam os diplomas de formado para alunos sem condição de recebê-los. Com isso, parte dos concluintes dessa etapa do ensino está habilitada formalmente a prosseguir, por terem seus diplomas, mas não têm condição, de fato, de aprendizado. Daí surge outro problema, a entrada da íntegra dessa massa de alunos no ensino superior, verificado pela análise das estatísticas de formandos.
De acordo com Pedrosa, desde 2002, o número de alunos que conclui o ensino médio está estagnado em torno de um milhão de pessoas. Já a entrada no ensino superior está na casa dos dois milhões de ingressantes. “Ora, obviamente você pega todo mundo que se forma para ingressar. Nem todos estão devidamente preparados para isso.” Surge aí mais uma questão. Com a baixa escolaridade e deficiências não resolvidas no ensino médio, graduandos têm mais dificuldade, em alguns casos são incapazes até, de aprender devidamente o conteúdo exposto na sua formação. “O governo pôs a carroça na frente dos bois. Agora, não consegue empurrar a carroça. Tudo isso é de uma irresponsabilidade total.”
Em meio ao cenário de incertezas, o mercado se movimenta em busca de oportunidades e uma das previsões indica a retomada do período de compra e venda de pequenas instituições. “Os pequenos estão sufocados. Vão ter de se reinventar para se manter no mercado”, avalia Sólon Caldas, diretor Executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes). Para ele, o governo tem todo o direito de rever o programa de financiamento no momento oportuno, mas faltou planejamento das instâncias governamentais. “Eles poderiam ter implementado as alterações paulatinamente. Causariam menos desentendimentos. O governo só olhou para o próprio umbigo”.
De dentro para fora |
Na opinião de especialistas o momento é de fortalecer a qualidade das instituições para garantir a continuidade no mercado. No caso do ensino básico, para o professor de administração da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), Thiago Francisco, o MEC precisará estabelecer uma força de qualificação para que os alunos possam vencer a barreira do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) com a qualidade necessária de formação. “Atualmente, ao menos 50% dos alunos que utilizam o Fies estão aquém da pontuação definida pelas novas regras”, lembra. Francisco cita, também, o fato de internacionalmente haver sistemas e políticas educacionais de grande abrangência populacional que visam integrar no ensino superior seus cidadãos menos escolarizados. “A decisão do Fies do final de 2014 não tem muito padrão. Ela tira, por exemplo, a possibilidade de qualificar um sujeito, que está há muito tempo sem estudar, de voltar para o banco da escola.”Tendo isso em vista, no caso da gestão de instituições de ensino superior, Francisco também sugere investir na qualificação, seja educacional ou administrativa, para se manter no mercado com ensino de qualidade e menos dinheiro disponível. A resposta a essa situação, para ele, passa pela racionalização dos recursos, a construção de uma nova proposta de valor à prática de seu ensino. Em outras palavras, o que a instituição entrega ao seu aluno a diferencia. “Os alunos precisam identificar valor agregado nos serviços prestados. Se isso não acontecer, eles vão embora para um concorrente.” |