Pesquisa mostra relevância social e sustentabilidade do Fies a longo prazo. Porém, mudanças recentes, restringindo o acesso dos alunos, afetam crescimento do ensino superior, contrariando finalidade do programa e metas de inclusão do próprio governo por José Eduardo Coutelle O ano de 2015 começou e […]
Publicado em 24/02/2015
Pesquisa mostra relevância social e sustentabilidade do Fies a longo prazo. Porém, mudanças recentes, restringindo o acesso dos alunos, afetam crescimento do ensino superior, contrariando finalidade do programa e metas de inclusão do próprio governo
por José Eduardo Coutelle
O ano de 2015 começou e já traz consigo um gosto amargo para o ensino superior privado no Brasil. As perspectivas de crescimento lento, refletidas nos números do Censo de 2013, foram substituídas por apreensão ainda maior, gerando dúvidas sobre o futuro do setor. Em ritmo de contingenciamento, nem a pasta da Educação ficou de fora da austeridade econômica do governo federal, que acabou apertando o cinto do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), a principal mola propulsora do ensino superior no país.
Especificamente, as mudanças ocorridas se referem ao processo de pagamento e recompra dos certificados do Tesouro às faculdades, diluindo o crédito referente ao financiamento ao longo dos meses, e à implantação de uma nota mínima exigida no Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) para os alunos obterem o crédito federal. A partir de abril, os estudantes que buscarem o programa precisam ter obtido pelo menos 450 pontos e não ter zerado a redação. Na prática, essa última alteração torna inelegível ao financiamento pelo menos a metade dos alunos que realizaram o Enem, já que, segundo dados do MEC, apenas 50,5% dos alunos atingiram essa pontuação no último exame.
A medida atinge em cheio um dos principais programas de inclusão no ensino superior, que viu nos últimos anos, principalmente graças à expansão do crédito, o número de matrículas em cursos presenciais passar de cinco milhões no total, em 2008, para mais de seis milhões, em 2013. Nesse período, o Fies passou de cerca de 32 mil alunos novos contemplados anualmente para mais de 560 mil (em 2014, esse número saltou para mais de 770 mil novos contratos), e atualmente existem 1,8 milhão de contratos ativos. Além disso, as mudanças contrariam as diretrizes do Plano Nacional de Educação (PNE) aprovado pelo governo.
Abalo nas estruturas
Fora a quebra do diálogo e confiança, constituídos entre o setor da educação superior privada e o Ministério da Educação ao longo dos anos do mandato anterior, os depoimentos à imprensa do ministro Cid Gomes são alarmantes. “Só vou aceitar financiar matrícula em cursos bons, que tenham conceito excelente. Se isso vai para um milhão [de beneficiados] ou descer para 100 mil, não me interessa”, chegou a dizer o chefe da pasta.
Ainda assim, representantes das instituições de ensino buscam alternativas para colaborar com o aperfeiçoamento das regras do Fies. Conforme o diretor-executivo do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp), Rodrigo Capelato, uma ação viável seria alterar a regra de corte para a renda mínima do aluno, ao invés de mexer na nota. “A pontuação elitiza o ingresso no ensino superior. E essa medida não justifica a questão de qualidade, pois já existe um sistema robusto de avaliação dos cursos feito pelo MEC. Se há a necessidade de fazer um corte, que seja pela renda”, sugere.
Conforme dados obtidos pelo Semesp, 49,5% dos alunos que prestaram o Enem em 2014 já não poderiam solicitar o financiamento por não terem alcançado os 450 pontos. A queda de ingressantes no ensino privado seria ainda mais alarmante. Pelos cálculos de Capelato, desconsiderando os estudantes que entraram nas universidades públicas, os que obtiveram bolsa do Programa Universidade para Todos (ProUni) e os candidatos com renda familiar acima do mínimo permitido, o percentual de pessoas elegíveis ao crédito estudantil seria de 57,4% dos participantes. Isso antes das novas restrições. A partir de abril, quando passa a vigorar a regra da pontuação mínima, esse percentual despencaria para 16%.
Apesar de prejudicar as instituições de ensino superior, que planejaram seu orçamento com base na sustentabilidade do financiamento federal, são os alunos os mais prejudicados. O setor, que tinha previsão de crescer 10% até 2017, agora estima um decréscimo de 5% no período. Isso representa a exclusão de milhares de vagas nos bancos universitários, o que vai de encontro à política de expansão proposta pelo PNE, que entre suas metas determina elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% e a taxa líquida para 33% da população de 18 a 24 anos nos próximos dez anos. Além disso, entre as diretrizes do plano consta justamente a expansão do financiamento estudantil por meio do Fies. Atualmente a taxa líquida de estudantes no ensino superior se encontra na casa dos 16% e tende a diminuir com a resolução.
Programa social
Uma pesquisa encomendada pelo Semesp, no ano passado, a especialistas da Fundação Getulio Vargas (FGV) corrobora a importância do programa de financiamento estudantil do governo federal para o desenvolvimento, inclusive, da economia do país. O aumento do número de estudantes de graduação resultou, ao longo de uma década, na criação de dezenas de novos centros universitários (aumento de 66%) e quase 400 novas faculdades (aumento de 26%). As matrículas, nesse período, quase dobraram, os ingressantes tiveram um acréscimo de 80% e os concluintes mais que duplicaram, chegando à casa de 110%.
Mas o impacto do programa apontado pelo economista Samuel Pessoa, autor da pesquisa sobre a sustentabilidade do Fies, se reflete especialmente no aumento da geração de renda e consequentemente na economia brasileira. Ou seja, com o programa financiando a graduação de nível superior, mais pessoas têm condições de elevar sua remuneração salarial após concluir o curso. Com isso, além de honrar o financiamento, o sucesso profissional dos estudantes beneficiados resulta diretamente em maior retorno tributário aos cofres públicos, passando do imposto de renda a todos os demais agregados ao consumo. E o mais importante: em uma previsão conservadora, o aluno não só quita suas dívidas, como também financia a formação de outros 11 estudantes apenas com os ganhos arrecadados pelo Fisco ao longo de 35 anos de atividade no mercado. “O Fies é um programa muito moderno de intervenção estatal no ensino que atende ao objetivo de igualdade de oportunidades”, defende Samuel Pessoa.
Essa aposta no aumento dos prêmios salariais se baseia numa realidade da economia brasileira: quem tem o diploma de ensino superior ganha mais do que as pessoas com apenas o ensino médio completo. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) apontam que, em 2012, um profissional que concluiu a faculdade tinha renda média de R$ 3,6 mil, enquanto para aqueles com apenas o nível médio, a remuneração auferida caía para R$ 1,4 mil.
De volta ao cenário projetado no estudo, é imprescindível fazer algumas considerações para se chegar ao resultado apontado. Pessoa salienta que se houver a adimplência total das mensalidades, o governo ainda arca com 43% do valor total dos empréstimos, conferindo, assim, a função social de transmissão de renda ao programa. Para o economista, do ponto de vista financeiro, devido ao fortíssimo subsídio envolvido, e mesmo com a possibilidade de inadimplência, o maior retorno do Fies será o ganho de receita produzida pela elevação da produtividade do aluno beneficiado.
A previsão otimista apresenta algumas fragilidades que necessitam de atenção. Uma questão fundamental é garantir que o aluno não evada e conclua o curso. Para isso é salutar ampliar as atribuições da linha de crédito, que hoje contempla apenas o pagamento das mensalidades.
Outro resultado do estudo contratado, também reflete a importância da qualidade do ensino. A recomendação dada vai ao encontro da manutenção permanente de mecanismos que regulem a qualidade do ensino. “Se o aluno entrar na faculdade e aprender um monte de coisas, o programa será sustentável. Do contrário, não. E isso depende da qualidade dos cursos oferecidos”, considera Samuel Pessoa.
Apesar da preocupação do governo em regular a qualidade dos alunos que obtêm o financiamento ir nesse sentido, estabelecendo uma pontuação mínima para acesso ao benefício, o maior problema da má formação reside justamente no nível anterior ao ensino superior, ou seja, no ensino básico. Resultados da Prova Brasil 2013 mostram que 40% dos estudantes que completam o ensino fundamental são incapazes de identificar o assunto principal de um texto e que 37% não compreendem a regra da porcentagem.
“Sabemos que os alunos chegam cada vez menos preparados. É um problema de nível generalizado”, comenta o vice-presidente de Graduação Presencial da Kroton, Américo Matiello Jr. Para enfrentar essa situação, algumas das apostas do grupo são a utilização de ferramentas e plataformas educacionais e revisões dos conteúdos, que deveriam ter sido aprendidos ainda no ensino básico, durante os quatro primeiros semestres da grade curricular. “Temos pouco a fazer para melhorar o ensino fundamental e médio. Mas estamos tentando nivelar os alunos”, relata.
Educação superior para as massas |
A inclusão das classes C e D nos cursos superiores, através das linhas de financiamento, amplia largamente a demanda das instituições de ensino, mas também acende um sinal de alerta. Com um grande percentual de alunos provenientes de uma educação básica deficitária, as universidades terão de vencer essa barreira sem reduzir o nível de exigência dos conteúdos e sem provocar o aumento dos índices de evasão. Alguns números provam que o país ainda está muito longe de atender a toda uma demanda reprimida de pessoas que desejam cursar o nível superior, mas que não têm como arcar com as mensalidades e demais despesas. Somente em 2014, quase nove milhões de candidatos se inscreveram no Enem e pouco mais de seis milhões prestaram a prova, um dos pré-requisitos para conquistar a linha de crédito. E anualmente mais 1,8 milhão de jovens completam o ensino básico e outros 6,5 milhões ficam pelo caminho. Enquanto isso, o Fies atendia em 2013 pouco mais de 500 mil estudantes anualmente. |