NOTÍCIA
A pesquisadora Nora Krawczyk diz que a "urgência" por mudanças e soluções rápidas exigida hoje por determinados setores da sociedade tem gerado uma indústria educacional de consultorias e afastado o conhecimento produzido nas universidades das informações valorizadas no âmbito político
Publicado em 05/12/2014
De que maneira a sociologia pode colaborar para as políticas educacionais? Esta é uma das perguntas subjacentes ao livro Sociologia do Ensino Médio – Crítica ao economicismo na política educacional, recém-publicado pela Editora Cortez, cuja organização ficou a cargo da professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Nora Krawczyk.
Nora: crítica à “cultura empresarial na escola” |
A obra aprofunda a compreensão do rumo das políticas educacionais na atualidade e as novas configurações da educação pública. Dessa forma, os autores dos oito artigos que integram a publicação contrapõem-se ao que chamam de atual tendência economicista, apresentando pesquisas realizadas na América Latina e Europa que demonstram que a sociologia pode oferecer uma reflexão político-educacional, em especial sobre o ensino médio.
Para Nora, que é membro do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas e Educação da Unicamp e fez mestrado em Estado, Educação e Sociedade na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais da Argentina, a ausência de diálogo entre a sociologia e a política educacional tem levado a políticas bem-intencionadas, mas que produzem resultados contrários aos seus objetivos.
Segundo a pesquisadora, as principais marcas da política educacional brasileira, porém, não são exclusivas ao país. Essas mesmas marcas também podem ser encontradas em países tão diferentes quanto Argentina, França ou Inglaterra. O atual cenário educacional no mundo não se trata, portanto, de um momento de “crise”, mas o resultado de abordagens atualmente dominantes nas políticas educacionais, como a pesquisadora explica na entrevista a seguir concedida à Educação.
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Como surgiram a ideia e a proposta do livro?
A ideia nasceu do meu incômodo, enquanto pesquisadora, pela falta de consideração pelas informações obtidas através de pesquisas em sociologia da educação na definição das políticas educacionais. O propósito do livro é chamar a atenção para a necessidade de recuperar o papel da sociologia crítica na formulação dessas políticas. São informações de extrema importância porque evidenciam as reações e consequências na sociedade e na escola de determinadas políticas educacionais. A partir da década de 1980, quando importantes reformas educacionais acontecem na Europa e na América Latina, surge a preocupação pela compreensão de como essas reformas mudam “de fato” a realidade educacional, principalmente dentro da escola. É assim que vamos encontrar uma presença maior de estudos com uma visão sociológica crítica das políticas educacionais.
A ausência de diálogo entre a sociologia e a política educacional tem se expressado, sobretudo, na pouca atenção às dinâmicas institucionais e sociais, quando se trata de implementar determinadas ações e estratégias governamentais – o que leva muitas vezes a que políticas educacionais bem intencionadas produzam resultados contrários aos objetivos.
Por que é importante discutir a visão economicista da educação nos dias de hoje?
Economicismo é um neologismo que identifica práticas e concepções originárias da gestão empresarial e transpostas às escolas. O enfoque economicista da educação tornou-se, nos últimos 30 anos, hegemônico na definição de políticas. Ao tirar determinações políticas diretamente de resultados provenientes de estudos econômicos, o economicismo provoca no senso comum a confusão entre quantificar e explicar, ocultando o verdadeiro significado dos números. A economia é hoje uma disciplina fortemente invocada para análise da eficiência das políticas educacionais. Entenda-se aqui por eficiência a capacidade de obter a melhor relação custo-benefício, em termos de rendimento e dispêndio. Estabelece uma relação de causalidade entre educação e desenvolvimento econômico do país e entre educação e mobilidade social, que muitas vezes não corresponde à realidade.
A senhora poderia citar alguns exemplos de situações em que a visão economicista tem se manifestado nas políticas educacionais?
As soluções a que se tem recorrido bebem na fonte da atividade empresarial. Estabelecem-se formas de competição entre escolas (rankings de desempenho). Procura-se reproduzir experiências tidas como bem-sucedidas, muitas vezes sem levar em conta a disparidade das situações. A educação é importante para o desenvolvimento econômico e a formação dos trabalhadores, mas não é só isso, nem é a responsável por esse desenvolvimento.
A escola tem a responsabilidade da formação do cidadão em todas as suas dimensões. Deve oferecer o conhecimento científico e cultural necessário para promover uma atitude crítica, reflexiva e capaz de compreender a sociedade na qual hoje estamos vivendo.
A difusão da visão economicista é algo que ocorre no Brasil ou está presente em outras partes do mundo?
Alguns fenômenos que consideramos próprios da dinâmica institucional brasileira também estão presentes em outras culturas. Ou seja, eles são resultado de uma política educacional de dimensão global, mas em alguns países está mais acirrada, como é o caso do Brasil. Tal como mostramos no livro, as principais marcas da política educacional brasileira podem ser encontradas também em países tão diferentes quanto Argentina, França ou Inglaterra.
Não se trata de um momento de “crise”, como tantos querem fazer crer, mas resultado de abordagens atualmente dominantes nas políticas educacionais. Por exemplo: as distorções provocadas pelas avaliações institucionais e os rankings de “melhores” escolas. Ou as contradições entre o “saber” escolar em voga e as vivências dos novos estratos sociais que ascenderam ao ensino médio em anos recentes.
Quais as consequências dessa visão para as políticas educacionais e o debate sobre a educação?
Já falei de algumas consequências, mas aqui quero abordar o que significa “cultura empresarial” na escola. Tenta-se alçar o empresário como figura emblemática e modelo a seguir tanto pelos professores quanto pelos estudantes. Esta ideia se expressa em propostas de mudanças de gestão nas escolas, nas condições de trabalho dos professores e também nas propostas curriculares.
As consequências são muitas e muito nocivas para a democratização e melhoria da qualidade do ensino público. A competição (e não a colaboração) passa a ser a tônica. Competição entre os alunos, competição entre as escolas, competição entre as famílias na escolha das escolas. Surgem fortes pressões pela especialização dos currículos e uma onda de ensino de empreendedorismo, que chega a assumir condição de disciplina, o que é um reducionismo, e mais ainda uma descaracterização, do papel social da escola e da formação de um jovem autônomo.
A verdadeira autonomia não se conquista apreendendo a planejar um futuro “incerto”, mas através de uma formação integral, que permita ao jovem compreender a sociedade contemporânea de forma crítica e exercer verdadeiramente a cidadania.
Qual o contraponto que a visão sociológica aporta ao debate contemporâneo sobre educação?
A educação está marcada, em todo o mundo, por diferentes projetos de sociedade, relações e poder e conflitos resultantes do choque entre democracia e capitalismo, que perpassou o século XX inteiro e se mantém nos dias de hoje. De um lado, uma dinâmica social de inclusão, de outro, retrocessos que se expressam em novas formas de exclusão. De um lado, a necessidade de formar cidadãos, de outro a exigência de capacitação para o trabalho.
A análise das dinâmicas institucionais e sociais é particularmente fértil quando pensamos o ensino médio, porque é possível observar na sua história uma tensão constante entre universalização e seleção, entre articulação interna e segmentação. Nessa tensão está a disputa entre diferentes grupos sociais pela apropriação de parcelas dos conhecimentos socialmente construídos, por um espaço no mercado de trabalho e pela participação no ensino superior.
É a perspectiva sociológica crítica que dá conta de interpretar essas contradições. Trata-se de desvendar as correlações de forças, revelar tensões e contradições dos projetos de democratização da educação. Ou ainda de colocar luz sobre as dinâmicas institucionais e sociais (nem sempre claras), desencadeadas a partir da implementação de determinadas ações governamentais.
São conhecimentos que não podem ser ignorados na hora de pensar políticas educativas democratizantes, porque seria negar a dinâmica social na qual a escola está inserida. As pesquisas sociológicas evidenciam as dinâmicas internas das instituições escolares e suas contradições. Analisam as práticas de ensino e de comunicação, a seleção dos conteúdos e as relações professor e aluno, entre outros, e como esses processos reproduzem as desigualdades sociais, étnicas e de gênero. Essas pesquisas de caráter qualitativo oferecem insumos importantes para compreender os comportamentos e a dinâmica institucional escolar e inferir resultados não desejados e não previstos de certas ações político-educacionais.
Desvendar essas práticas institucionais e as forças sociais que as definem é o primeiro passo para levar o poder público a um reposicionamento nas questões educacionais. Mas tal reposicionamento só se concretizará com uma abertura recíproca ao diálogo entre analistas acadêmicos e tomadores de decisão política.
Em que medida essa “perda de espaço” do olhar sociológico não se deve a um certo distanciamento das universidades no cenário da formulação e implementação das políticas educacionais?
Com relação ao isolamento das universidades a situação é bastante difícil. Por um lado, temos os tempos políticos que não são os mesmos que os tempos de pesquisa. Os governos querem resultados rápidos e em educação não existe essa magia. Esta “urgência” por soluções rápidas tem gerado uma indústria educacional de consultorias, que tradicionalmente assessoravam empresas, porque oferecem “pacotes de tecnologias de gestão” como estratégias de solução aos graves problemas educacionais.
Mas, por outro, também há outra questão: a produção da universidade não se expressa unicamente em propostas, mas sim e principalmente em oferecer um conhecimento aprofundado da realidade e, como falei anteriormente, das consequências (às vezes não desejadas) das estratégias políticas na sociedade e na instituição escolar. Esse conhecimento é divulgado de muitas formas: livros, artigos acadêmicos, artigos de jornal, congressos, fóruns, palestras para os movimentos sociais etc.
As mudanças na educação são processos lentos para se tornarem realmente permanentes. E esse descompasso entre os “tempos” leva ao que você chama de isolamento da universidade. É importante destacar que nem sempre foi assim. Pelo contrário, no Brasil a universidade foi sempre uma referência para compreensão da realidade: referência para a mídia, para os políticos e para os movimentos sociais.
A “urgência” de mudanças hoje exigida por determinados setores da sociedade faz este divórcio entre o conhecimento produzido na universidade e as informações valorizadas no âmbito político.