NOTÍCIA
Professores procuram na linguagem teatral uma forma de melhorar suas aulas e descobrem infinitas possibilidades de trabalhar conteúdos diversos com os alunos
Publicado em 06/11/2013
Formado em Letras e Artes Cênicas, Júlio César é o que se pode chamar de “artista-docente”, expressão utilizada para denominar educadores que trabalham com a linguagem artística em suas propostas pedagógicas. Desde 2007, o professor recorre ao palhaço “Tinin” para tornar as suas atividades com os alunos mais lúdicas. “Há uma questão pedagógica e didática na linguagem teatral. Apesar de o palhaço ser mudo, ele passa as regras de convivência em sala de aula. Eu uso lousa e giz, mas utilizo o palhaço como uma forma de conquistar o aluno, que tem de dar conta de muita coisa. Esses projetos são válidos no sentido de amenizar a sobrecarga do conteúdo ensinado”, afirma o docente.
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Guia prático
Assim como Júlio César, diversos professores têm aderido ao teatro para ensinar conteúdos de disciplinas como português, história, física e matemática. Segundo a psicóloga e professora de teatro Ana Betina Rugna, 90% dos seus alunos são professores que querem aprender a utilizar a linguagem teatral nas salas de aula. Autora do livro Teatro em sala de aula (Editora Alaúde), Betina elaborou um guia prático para os professores que desejam explorar esses recursos com seus alunos.Em sua experiência com os docentes, Betina observou que os professores sentiam insegurança por não conseguirem transmitir suas ideias de forma clara e criativa.
Para ela, a linguagem teatral pode transformar os professores. “Quando eu trabalho com o professor ele se redescobre, tanto quanto a criança. Assim como as crianças, eles começam de um jeito, mas terminam o curso diferentes, fazendo uma redescoberta do outro e de si mesmos”, avalia.
Professor de artes cênicas da Escola Lourenço Castanho, em São Paulo, Pedro Haddad concorda com Betina. “A escola é um lugar essencial para que as crianças tenham o primeiro contato com o teatro, mesmo que não seja unicamente pela disciplina de artes cênicas. A linguagem pode ser utilizada de maneira muito feliz como complemento e incremento das dinâmicas dentro da sala de aula”, acredita.
O número de professores formados na área ainda é pequeno, mesmo que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) estabeleça o ensino da arte como obrigatório. Na maioria das vezes, a utilização do teatro na escola se restringe à disciplina de artes cênicas, quando há, e que nem sempre consegue dialogar com outras matérias. Além disso, o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) estabelece metas de qualidade para o desenvolvimento do ensino das crianças na creche e na pré-escola, mas não menciona a utilização do teatro como mecanismo de aprendizagem.
Formação
Betina Rugna explica que tirar o teatro do palco e levá-lo para dentro da sala de aula é simples, mas exige calma e conhecimento da parte do profissional. “O ensino do teatro não é apenas fazer uma peça e pronto. Primeiro, a criança descobre o corpo como ferramenta, depois começa a utilizar linguagens verbais e não verbais, depois trabalha a parte da expressão falada e não falada, depois as duas juntas, até que ela domina essa arte e pode dialogar com outros saberes. Faz parte da vivência. Se você for pensar bem, o teatro é uma grande brincadeira, pois todos nós o utilizamos no dia a dia”, diz.
Na opinião dela, não é preciso ser formado na área para se arriscar na linguagem.”Os jogos teatrais ajudam a fixar os conteúdos, mas também a desenvolver outras linguagens, tanto verbais, quanto não verbais. Quando o professor fala sobre os sentidos, está ensinando ciências. Quando lê um texto e o interpreta, a criança está trabalhando a criatividade e o vocabulário. O tempo todo o teatro trabalha uma função específica, por meio da linguagem”, defende.
Já para o professor de artes cênicas Pedro Haddad, essas atividades podem ajudar no aprendizado, mas dependem de como são usadas em sala de aula. “Por seu caráter coletivo e lúdico, as dinâmicas teatrais proporcionam experiências que promovem o envolvimento das crianças de maneira única. Mas é importante notar que as dinâmicas, por si só, não levam a nada, e é essencial que elas sejam bem conduzidas e acompanhadas de uma reflexão. Para isto o professor deve sim se preparar”, salienta.
Assim como ele, alguns profissionais que trabalham com o teatro temem que sua dinâmica nas escolas seja reduzida à condição de suporte para outras disciplinas. “É interessante que o teatro possa mediar e fazer parte desses projetos interdisciplinares, mas há de se ter um pouco de cuidado para que ele não perca aquilo que lhe é valoroso”, reitera o professor da ECA da Universidade de São Paulo (USP), Flávio Desgranges.
Interpretando a matemática
Mesmo sem formação teatral, o professor João Batista do Nascimento conseguiu o que poderia parecer impossível: materializar conceitos matemáticos abstratos para crianças da 3ª e 4ª séries.Vestidos de figuras geométricas, os alunos dão vida a personagens como “sujeito quadrado”, “triângulo amoroso” e “círculo vicioso” em um espetáculo sobre geometria plana, que chegou a ser divulgado até em Portugal. “A aplicação com as crianças foi simplesmente fenomenal. Elas compreenderam o essencial: estudar matemática e dialogar entre elas por meio desses saberes”, diz o professor, que é da Faculdade de Matemática do Instituto de Ciências Exatas e Naturais (Icen) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e realiza esse projeto de extensão há dez anos.
João Batista critica a capacidade dos professores de serem claros no momento da transmissão do conteúdo. “A maior dificuldade para tornar o ensino didático sempre fica do lado do docente, pois já tendo uma ideia preconcebida de como ensinar a matéria, ele acaba resistindo a novas possibilidades criadas pelos alunos e, às vezes, impõe o seu modelo de ensino”, analisa.
Para a professora Andrea Gonçalves Poligicchio, que durante dez anos deu aulas na escola da Fundação Bradesco, em Osasco, na Grande São Paulo, o teatro empresta a oralidade que falta à matemática. “Assim, a linguagem simbólica da disciplina não precisa ficar sendo explicada toda hora e tudo ocorre de uma forma natural”, defende.
Nas aulas de Andrea, os alunos eram convidados a interpretar alguns textos e, com o passar do tempo, a turma resolveu que o conteúdo poderia ser adaptado em uma peça. “Geralmente nós pegávamos um conto de fadas e fazíamos uma adaptação. Lembro de uma aluna que escreveu Romeu e Julieta e incorporou diversas lições de matemática às falas dos personagens. Os conteúdos eram aprendidos de forma divertida e natural por meio da linguagem teatral”, relembra Andrea, que defendeu dissertação de mestrado pela Universidade de São Paulo (USP), sob título “A materialização da narrativa matemática”. Andrea atualmente dá aulas no Colégio Santa Cruz, em São Paulo.
Reescrevendo a história
Para o professor Flávio Desgranges, do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (USP), um método bastante eficaz na hora de transportar o teatro para a sala de aula é o método de Drama, de origem anglo-saxônica, e que pode ser utilizado na disciplina de história, por exemplo.
Flávio conta que teve contato com o método em uma oficina para professores, desenvolvida pelo educador inglês Joe Winston em Bruxelas, na Bélgica. De acordo com ele, o processo se constitui como construção conjunta de uma narrativa teatral, e por isso pode ser entendido como uma forma de arte coletiva, em que professor e alunos assumem as funções de dramaturgos, diretores, atores, espectadores e pesquisadores. “O Drama trabalha muito a partir do texto. Ele pode trazer a possibilidade da luz em cena, ou a possibilidade da inserção de objetos cênicos, ou mesmo uma palavra, ou um gesto. Esse método pode criar jogos de improvisação a partir de jogos teatrais”, afirma Flávio.
Sem ter uma ideia preconcebida do Drama, um pesquisador brasileiro desenvolveu uma metodologia que lembra algumas técnicas do método inglês. Inspirado em experiências de educação popular e em movimentos sociais, o professor de história da África da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Waldeci Ferreira Chagas, agregou uma linguagem totalmente diferente para contar a história das populações negras. Ao invés de apostilas, ele propôs utilizar o teatro de bonecos, propiciando que professores e alunos desenvolvessem a confecção dos bonecos, o enredo e o cenário das aulas.
“O livro deve ser o pretexto para as aulas e não o único meio de aprender”, afirma Waldeci. “O texto construído e encenado para o teatro de bonecos não é uma cópia do que está no texto do livro didático, mas transcende a interpretação e abordagem que este traz. Nesse aspecto, acredito que a inserção da arte no currículo escolar e o diálogo dela com outras áreas de conhecimento auxiliam no processo de ensino-aprendizagem”, explica o pesquisador, que aplicou a metodologia com diversos alunos da UEPB em 2003.
Apesar da iniciativa, os educadores tiveram dificuldades em replicar a proposta com professores de escolas do município de Guarabira, se contentando com algumas apresentações que ocorreram na época em que seu método foi aplicado.
Waldeci garante, entretanto, que com a utilização dos bonecos no cotidiano escolar os alunos saíram da condição de meros ouvintes e passaram a “reescrever” a história, reconstruindo a narrativa das aulas e estreitando a relação entre os estudantes e os professores.
No cangaço
Júlio César Sbarrais, o palhaço “Tinin” do começo do texto, também utiliza outros personagens para ensinar língua portuguesa. Um dos seus preferidos, o cangaceiro Lampião, é frequentemente utilizado nas aulas de literatura de cordel. “Acho interessante trabalhar o lúdico dentro da realidade. Claro que pelo teatro eu consigo brincar com diversas linguagens. Na língua portuguesa, eu posso utilizar estilos musicais e aproveitar as mais variadas formas de estudo para transformar o aprendizado do aluno”, explica.
Para que os alunos possam participar de uma forma mais ativa das aulas, Júlio utiliza o livro Lampião e Lancelote, escrito por Fernando Vilela. A partir daí, ele organiza os alunos em uma roda e divide a prosa com os estudantes. Enquanto um interpreta Lampião, o outro vira Lancelote, e as palmas acompanham o ritmo que o professor embala em um pandeiro.
“É uma experiência diferente. Se o professor é criativo, ele cativa a atenção e a matéria fica mais interessante”, diz a estudante Ainna Júlia, da 8ª série do ensino fundamental da Escola Estadual Padre Afonso Paschotte, em São Paulo.
“A relação da educação com o teatro mostra que é possível e viável trabalhar todas as disciplinas do currículo escolar. O grande lance do teatro é você fazer desde um espetáculo até uma apresentação em um espaço simples, dentro da sala de aula”, propõe Betina.
Resistência inicial | |
A dificuldade em dialogar com os alunos em sala de aula foi um dos motivos que fizeram com que o professor Márcio Medina traçasse novos caminhos no ensino da física para os estudantes do ensino médio do Colégio Qi, no Rio de Janeiro. “Nós estávamos com alguns alunos muito arredios a aprender, então sugeri ao grupo fazer uma peça de teatro que abordasse os conteúdos ensinados em sala de aula”, afirma o docente. A primeira peça adaptada foi A vida de Galileu (2007), obra do autor alemão Bertolt Brecht. Com algumas modificações no texto original, os alunos começaram a ensaiar o espetáculo no Núcleo do Teatro Científico (Nutec) do Colégio Qi, criado a partir da iniciativa do professor Medina. Em uma semana eles estrearam o espetáculo. “Foi surpreendente. Os pais, os amigos dos alunos, os diretores da escola ficaram encantados. A qualidade do trabalho foi acima do esperado. Quando um dos donos da escola viu o espetáculo, ele me abraçou com lágrimas nos olhos e disse: “obrigado por essa oportunidade de eu ter visto o Galileu em teatro”, relembra o professor. Apesar do sucesso, Medina admite que no início sua proposta não era unanimidade. “Qualquer atividade extracurricular em uma escola tradicional é vista com desconfiança. Mas eles começaram a perceber que o trabalho não era sem propósito. O teatro estreitou o laço afetivo entre o professor e o aluno. E a linguagem, que é tão formal dentro da sala de aula, ficou mais informal e clara durante o processo”, avalia. |
A neurociência explica | |
Para a professora de Neurociência Pedagógica, Marta Relvas, uma boa forma de se conectar com os alunos é entender que “a razão é uma emoção elaborada”. “Todo o sistema nervoso é uma estrutura orgânica que recebe estímulos através de canais sensoriais. Portanto, quando uma informação chega ao cérebro, ela passa antes por processos emocionais. Isso mostra que o professor precisa caminhar com seus conteúdos em sala de aula tendo atenção no aluno. O professor sempre será uma peça fundamental em despertar o interesse no estudante”, explica a professora. Em seu livro Neurociência e Educação, gêneros e potencialidades na sala de aula (WAK Editora, 2010), ela defende que trabalhar o corpo é uma forma de assimilar melhor o conteúdo ensinado. “80% do nosso cérebro é baseado em emoção. Quando o educador estimula o cérebro do aluno a criar, a sala de aula passa a ser um local prazeroso. Aprender é um ato desejante. Se o professor utiliza uma didática teatral, em que o aluno pode utilizar o corpo para aprender, ele consegue assimilar 60% da mensagem do professor, enquanto numa aula em que ele fica sentado, assimila somente 20% do conteúdo”, diz a professora. |
Trabalhando a percepção | |
Uma boa forma de fortalecer o aprendizado dos alunos é trabalhar a utilização do teatro por meio de aspectos cognitivos. Em seu livro Teatro em sala de aula, Betina Rugna mostra como os professores podem aproveitar recursos do próprio corpo para trabalhar a linguagem teatral com as crianças. Uma das inspirações da autora veio da personagem “Bla”, espécie de fantoche desenhado na mão de um dos apresentadores do programa Bambalalão, exibido pela TV Cultura de São Paulo, de 1977 a 1990. Coordenadora pedagógica do Catavento, outro programa exibido na TV Cultura na década de 1980, Betina diz como foi trabalhar com esses programas infantis. “A gente utilizava atividades que trabalhassem todo o esquema corporal, a percepção sensorial, a lateralidade, a percepção do espaço. Deixávamos a criança três horas se vestindo sozinha com um pijama, respeitávamos o espaço dela. Descobrimos a partir daí que todas as crianças que assistiam ao programa também ficavam vestindo o pijama”, relembra. Na Escola Estadual Padre Afonso Paschotte, o professor Júlio César também procura desenvolver atividades que valorizem a percepção e o ambiente escolar. Além do “Jardim da Leitura” – sarau em que os alunos plantam flores e contam histórias -, o docente procura dar características humanas a seres inanimados ou a sentimentos. Júlio César conta que já foi caracterizado de “Zé Preguiça” para dar aula e espalhou cartazes pelas paredes com a mensagem “Zé Preguiça, procurado!”. “A proposta era estimular as crianças que não gostavam de ler a se interessar mais pelos estudos. A ideia deu certo e os alunos desenvolveram redações ótimas explorando o universo da preguiça”, diz o professor, que utilizou livros como travesseiro para dar vida ao personagem. |