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Tradição e progresso

Ainda é possível imaginar que o passado tenha algo precioso a oferecer ao presente

As primeiras décadas do século 20 têm sido descritas por historiadores da educação como um período marcado pelo otimismo pedagógico. Um otimismo que dizia respeito tanto ao papel da escola na modernização das sociedades quanto à modernização das próprias práticas pedagógicas. Dois processos que, mais do que solidários, eram vistos como inseparáveis. A expansão do atendimento escolar deveria corresponder também à renovação das relações entre professores e alunos e entre estes e o conhecimento; uma renovação que se apresentava em contraposição a práticas descritas como autoritárias e a relações tidas por excessivamente hierarquizadas.


Muitas vezes as teorias e tendências pedagógicas que então apareceram – bastante diversas entre si – foram unificadas sob um rótulo único que as identificava como o ‘movimento escolanovista’. Mais do que um núcleo de princípios compartilhados, o que uniu a diversidade desses discursos escolanovistas foi a eleição – ou, para ser mais preciso, a invenção – de um inimigo comum: a “escola tradicional”. Suas descrições caricaturais dos professores, métodos e práticas tradicionais sempre associavam o termo “tradição” ao indesejável, ao arcaico, ao que deveria ser substituído pelo novo. Assim, a “aula tradicional” era descrita como centrada no professor e alheia aos interesses e à cultura dos alunos; o “professor tradicional” visto como autoritário, severo, cujo único recurso seria a aula expositiva, também ela – evidentemente – outro arcaísmo a ser superado.
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É evidente que sempre foi possível achar exemplos frisantes de professores e práticas pedagógicas que viessem a dar substância empírica a essas críticas caricaturais dos escolanovistas a um suposto modelo tradicional. Aliás, no acervo de recursos pedagógicos, jamais faltaram práticas cuja mera evocação já seria capaz de provocar repulsa em qualquer pessoa que tenha apreço pela educação e respeito pelas crianças. Mas isso vale inclusive para as autoproclamadas escolas renovadas, construtivistas, alternativas e progressistas (pois, infelizmente, o despautério pedagógico não é privilégio de qualquer tendência em particular!). Houve, no entanto, um efeito deletério dessa difusão de slogans que identificavam o termo “tradição” com aquilo que é obscuro, obsoleto e que deve ser banido. E ele não é de natureza metodológica, nem pedagógica, mas diz respeito à relação que uma sociedade estabelece com o seu passado.


O termo tradição origina-se do latim “traditio”, cujos significados poderiam ser agrupados em três grandes blocos. Por um lado, ele designa um acervo de lições do passado que tem a faculdade de iluminar as incertezas e os dilemas do presente, daí a ideia romana de que a história seria a ‘mestra da vida’. Por outro, ele se refere à grandeza do exemplo dos ancestrais; daí por que uma pedagogia fundada na tradição, como a cristã, recorrer tão frequentemente à narrativa de episódios e vidas memoráveis como fontes de padrões e critérios morais. E por último, “traditio” é a própria “transmissão” desse legado por meio do qual o passado se faz presente, vinculando-nos à história e à cultura de um mundo ou povo ao qual viemos a pertencer pelo acidente de nosso nascimento. A “traditio” era parte tão fundamental do ideal educacional romano que Políbio afirmava que o objetivo da educação era tornar os jovens dignos de seus maiores antepassados.


Sim, os tempos mudaram. Mas ainda é possível imaginar que o passado tenha algo de precioso a oferecer ao presente. Que haja vidas, feitos e palavras memoráveis que valham a pena ser ensinados aos mais jovens. Que caiba aos educadores transmitir um legado simbólico que nos una a um passado comum. Que apesar de nossa firme – embora talvez insensata – crença no progresso, a tradição possa ter algum lugar na educação. Não nos métodos, mas no sentido de nossa relação com o passado.

*José Sérgio Fonseca de Carvalho
Doutor em filosofia da educação pela Feusp e pesquisador convidado da Universidade Paris VII
jsfc@editorasegmento.com.br

Autor

José Sérgio Fonseca de Carvalho


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