Novas regras estipuladas pelo MEC para a abertura de vagas de medicina e direito trazem à tona uma discussão que vai além do poder do Estado
Publicado em 05/04/2013
Novas regras para a abertura de vagas de medicina e direito trazem à tona uma discussão que vai além do poder de regulação do Estado: o controle do ensino superior caminha junto com a política de desenvolvimento do país?
por Maria Celeste Oliveira
O Ministério da Educação (MEC) divulgou, em fevereiro, novas regras para a abertura de vagas de graduação em medicina e anunciou que pretende modificar os critérios para novos cursos de direito. As medidas, por um lado, remetem a um maior controle sobre a qualidade da formação oferecida, uma reivindicação especialmente de entidades profissionais de determinadas áreas. Por outro lado, abrem caminho para discutir uma política de ensino superior na perspectiva do desenvolvimento do país, e a implementação de ações voltadas a estimular a formação de profissionais em áreas específicas.
O caso dos médicos é emblemático nesse sentido. Existem, no Brasil, dois médicos por 1.000 habitantes em média, quantidade suficiente para atender às necessidades da população, de acordo com o estudo Demografia Médica no Brasil, divulgado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) no mês passado. O estudo também mostra que o número de profissionais formados aumentou 557% nos últimos 40 anos.
Apesar disso, faltam profissionais em determinadas localidades – sobretudo no Norte, Nordeste e Centro-Oeste (com exceção do Distrito Federal) – porque a distribuição é irregular no território nacional: os habitantes do Sudeste e do Sul contam com duas vezes mais médicos do que os das demais regiões. No Sudeste, a taxa chega a 2,7 médicos por grupo de 1.000 habitantes.
A má distribuição foi um dos argumentos centrais para o MEC estabelecer as novas regras, dentre elas o “interesse público”. Há uma concentração de vagas de medicina nas regiões mais ricas, especialmente no Sudeste. São Paulo detém o maior número de escolas médicas (30), oferecendo 3.081 vagas no primeiro ano. Minas Gerais está em segundo lugar com 30 escolas e 2.564 vagas. Na outra ponta do ranking estão o Maranhão, com três escolas de medicina e 214 vagas, e a Bahia (nove escolas, 753 vagas).
Caberá ao Ministério definir as cidades em que poderão ser abertas novas vagas, prioritariamente onde há escassez de profissionais. A partir de abril, serão lançados editais para selecionar instituições interessadas em abrir cursos nos municípios indicados.
No caso de direito, representantes do MEC e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) vão elaborar em conjunto uma nova política regulatória, modificando os critérios de abertura de cursos na área. A medida atende a uma antiga reivindicação da OAB que se posiciona contrariamente ao que entende ser uma abertura indiscriminada de cursos, o que acarreta rebaixamento da qualidade.
A entidade de classe se baseia nos resultados insatisfatórios do exame da OAB, que dá a chancela aos formados em direito para atuar como advogados, e apresenta taxa de reprovação de cerca de 80%. O Censo da Educação Superior do MEC aponta que entre 2001 e 2011 o número de cursos de direito no país saltou de 505 para 1.120. A graduação em direito detém o maior número de matrículas: cerca de 723 mil.
Ações articuladas
O estabelecimento de regras mais claras, com contornos de uma política de Estado, para a formação de profissionais tem a simpatia de especialistas e entidades profissionais. No entanto, a regulação mais estrita dos cursos de graduação não é, necessariamente, a solução para os problemas que existem atualmente.
Para o presidente do CFM, Roberto d’Ávila, o governo acerta ao vincular a abertura de novas vagas onde há necessidade social vinculada à oferta de vagas de residência e à existência de hospital-escola – um dos critérios previstos na norma do MEC. O desafio, contudo, é assegurar que as instituições de ensino contem com um corpo docente qualificado.
“É muito difícil levar médicos e professores para regiões como o interior do Maranhão e da Bahia”, conta d’Ávila. “É necessária uma estratégia de ganhos adequados, pois não adianta ter escola médica e residência de má qualidade”, analisa.
Paralelamente, sem uma política pública de interiorização da assistência, capaz de atrair o médico recém-formado a permanecer na região onde se forma, o governo corre o risco de não ver um dos objetivos da medida atingido: a fixação de médicos no interior. Isto porque, como sugere o estudo Demografia Médica no Brasil, a localização dos cursos não é fator determinante para a fixação dos profissionais, e sim aspectos como oportunidades de emprego, salários, possibilidades de crescimento profissional.
Controle e qualidade
A melhoria da qualidade dos cursos jurídicos é o principal argumento para a parceria entre MEC e OAB para definir novos critérios para abertura de vagas. Um deles deverá ser a mudança de status dos pareceres emitidos pela entidade sobre os pedidos de abertura de cursos e/ou de vagas.
A legislação em vigor prevê que a OAB se manifeste quanto aos pedidos de abertura de vagas encaminhados ao MEC, mas os pareceres têm caráter apenas opinativo. De acordo com a entidade, em 2012, de 31 pedidos de expansão ou de abertura de novos cursos de direito analisados pela OAB, somente cinco obtiveram parecer favorável, seja por falta de qualidade da proposta pedagógica, seja pela ausência de necessidade social da graduação naquela localidade.
Assim como em medicina, o MEC pretende adotar uma política de editais, com o objetivo de induzir a abertura de graduações nas áreas onde há carência de profissionais. A mesma lógica poderá ser replicada para outras graduações, como a de odontologia.
Via de mão dupla
Na opinião do consultor Roberto Leal Lobo, presidente do Instituto Lobo, a regulação mais estrita pode surtir o efeito contrário do desejado. “O controle excessivo dá margem para injunções políticas e de outras naturezas”, comenta. “Em muitos países, a restrição de vagas ou a justificativa de necessidade social se dá para o setor público, pois se aplica o dinheiro dos contribuintes, não para o setor privado”, alerta o consultor.
Para Lobo, a existência de várias graduações em uma mesma área numa mesma região não é necessariamente um problema, pois pode intensificar a competitividade. “No caso de bons cursos serem oferecidos num mesmo local, são as faculdades instaladas que tendem a gostar da restrição, mas quem quer entrar no mercado, não”, reflete.
Os critérios adotados para as novas regras de autorização de cursos também são um ponto relevante a ser considerado, lembra o advogado José Roberto Covac, especialista em direito educacional. De um lado, ele considera positivo o movimento na direção da definição de regras claras e objetivas, mas questiona alguns aspectos previstos, como o uso do Índice Geral de Cursos (IGC).
Para Covac, o IGC está sujeito a distorções, pois inclui informações fornecidas por alunos e resultados do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade). “Nesse caso, a verificação in loco é muito mais precisa”, propõe. Outra crítica feita pelo advogado é a demora na tramitação dos processos de avaliação do MEC, que podem levar até cinco anos. “Nesse período, a avaliação in loco pode se tornar obsoleta, pois a instituição pode ter mudado”, diz.
Políticas multissetoriais
As políticas de estímulo à formação de profissionais e sua fixação em áreas onde há carência precisam associar um conjunto de aspectos para que sejam bem-sucedidas – o que exige a articulação de várias áreas do governo. É o caso das engenharias, por exemplo, que, em comparação com outros países e levando-se em conta as necessidades de desenvolvimento do Brasil, mais recentemente vêm sendo apontadas como uma das áreas com maior escassez de profissionais. Conta ainda para esse quadro o baixo interesse dos alunos por esses cursos.
Na opinião do gerente de Relações Institucionais do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea), Roldão Lima Junior, esse diagnóstico, porém, não é fiel à realidade. Segundo ele, o problema da engenharia é semelhante ao que ocorre na área de medicina: a má distribuição de profissionais no território nacional, decorrente da falta de atrativos para eles se fixarem no interior e nas regiões mais distantes.
“Não faltam profissionais; há um problema de mobilidade”, argumenta Roldão. Há cerca de 600 mil engenheiros registrados no Confea, mas a grande maioria tende a se concentrar nas regiões mais desenvolvidas.
Em outras palavras, a chave para levar os profissionais para onde eles são mais necessários pode ser o desenvolvimento de ações que envolvam o MEC e outras pastas – ministérios do Trabalho e Emprego, do Desenvolvimento Social, Saúde etc. –, articulando formação de qualidade com mecanismos para atrair os formandos.
As associações profissionais também podem desempenhar um papel relevante, sobretudo controlando o exercício profissional, como o exame da OAB. “O controle da qualidade por meio da restrição de vagas não é necessariamente eficaz. Os resultados do Enade evidenciam que há profissionais com notas insuficientes atuando em todo mercado”, analisa Leal Lobo. “Já há mecanismos de controle suficientes no Brasil. É só aperfeiçoá-los”, sugere o consultor.