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Entrevistas

O mundo que lê

Historiador francês afirma que alfabetização crescente e maior disponibilidade de textos na era digital aumentaram o interesse pela leitura

Publicado em 20/12/2011

por Carmen Guerreiro

A humanidade nunca leu tanto quanto hoje. Por um lado, a era digital faz com que os textos estejam mais disseminados. De outro, a população mundial é cada vez mais alfabetizada. Nesse cenário, descrito pelo historiador francês Roger Chartier, é papel da escola ensinar aos jovens que existem diferentes formas de ler para diferentes necessidades. E, se as salas de aula devem incorporar a presença de computadores, internet e tablets como ferramentas, também é fundamental que os professores continuem a trabalhar a leitura de livros clássicos. “Não porque eles são ‘clássicos’, mas porque, com outros, mas talvez melhor do que outros textos, ajudam a pensar sobre o mundo, natural ou social, a compreender as relações com os outros, a fazer as perguntas essenciais da existência e a desenvolver uma crítica às instituições, às informações, às autoridades”, defende Chartier. Profundamente respeitado e estudado no Brasil e no mundo, Chartier é professor da Universidade da Pensilvânia e do Collège de France, diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Ehess), uma das mais importantes faculdades de história do mundo, e é considerado atualmente um dos principais pensadores no que se refere à história do livro e dos hábitos sociais de leitura. Em entrevista à repórter Carmen Guerreiro, o historiador francês fala sobre a importância das diferentes plataformas digitais para a leitura no mundo de hoje, e também frisa sua tese de que o texto muda de acordo com o meio no qual foi publicado – porque mudam também a formatação, a maneira de folhear ou fazer referências, a atenção que se exige. Além disso, o texto está sujeito ao próprio contexto de quem o lê. Para ele, classe social, idade, sexo, religião e outras características são fundamentais para determinar que tipo de leitura uma pessoa fará de um texto. Chartier lembra, no entanto, que na escola a leitura não pode ser reduzida a “exigências utilitárias”. “Os livros devem também fazer sonhar, divertir, permitir a reflexão, desenvolver o espírito crítico”, afirma.






Unesco / Edson Fogaça

 O senhor defende que a leitura é muito pessoal e que seu significado depende do formato em que ela se apresenta e da interpretação que se dá ao texto. O que isso significa?
Toda leitura é um encontro entre um texto e um leitor. Mas, por um lado, o texto lido está sempre em um meio físico de escrita (um livro, uma revista, uma tela), o que contribui para o seu significado. Neste sentido, podemos dizer que formas materiais de escrita afetam o significado dos textos. Esta é a forma do objeto escrito, do formato do livro, do layout, da presença ou não da imagem, etc. Por outro lado, a liberdade de interpretação de cada leitor depende das habilidades, hábitos, normas e práticas de leitura que ele ou ela compartilha com outros leitores que pertencem à mesma “comunidade de leitura”, definida por classe social, idade, sexo, religião, etc. A partir daí, surge a ideia de que um texto se transforma. Mesmo que ele não mude em sua literalidade, ao mudar de formas materiais e ao mudar seus leitores – ou leituras.

Como isso funciona na escola, em que se cobra a aquisição do mesmo conhecimento de todos os alunos?
Aplicada à classe, esta perspectiva deve levar à compreensão de como a materialidade dos textos lidos (no livro, na sala de aula ou na tela do computador) ajuda a indicar o seu status, seu uso, seu significado. E também para compreender o que se espera dessa leitura particular que é a leitura na escola, diferente em suas exigências e seus ensinamentos de outras leituras, feitas em casa ou em um espaço público.


O senhor defende que a revolução do livro eletrônico é talvez mais importante do que a descoberta de Gutenberg. Por quê?
Johannes Gutenberg inventou uma nova técnica para a reprodução de texto, acrescentando ou substituindo a imprensa para a cópia do manuscrito. Mas o livro antes ou depois de Gutenberg manteve suas mesmas estruturas fundamentais: as folhas dobradas, contidas em uma encadernação ou capa, e que distribui o texto em folhas e páginas. Este tipo de livro, que nomeamos códex (ou códice), estabeleceu-se no Ocidente entre os séculos 2 e 4 d.C., quando substituiu os rolos, que foram os livros dos gregos e romanos. Com o códice permitiu-se fazer ações antes impossíveis, como escrever lendo, fazer a paginação, um índice definido, folhear um livro, comparar facilmente diferentes passagens. Mas esta primeira revolução do livro não alterou a técnica de reprodução do texto, ainda atribuída somente à cópia do manuscrito. A revolução do e-book é uma revolução técnica (como a invenção da imprensa), uma revolução da plataforma da escrita (como a invenção do códex) e uma revolução na leitura, que desafia as categorias e práticas que definem a relação com a escrita desde o século 18.


Diz-se que os jovens de hoje são desinteressados pela leitura.  Como a escola pode reverter esse quadro, levando em conta que precisa trabalhar os “clássicos” da literatura?
É seguro dizer que o diagnóstico que afirma a rejeição da leitura entre os jovens deve ser corrigido, tanto pelo sucesso de certas obras ou séries como pelo fato de que telas de computador são telas de texto. A humanidade nunca leu tanto quanto agora. Porque os textos estão em toda parte, porque a alfabetização se tornou necessária devido ao comércio e à administração, porque o mundo digital é basicamente um mundo por escrito. A questão é, portanto, a das práticas que não são mais da tradição literária ou de ensino. Daí o papel da escola. Ela deve ensinar as habilidades necessárias para nossos futuros cidadãos ou consumidores que serão confrontados com a escrita. Deve mostrar que existem diferentes maneiras de ler para diferentes necessidades. Também deve organizar a ordem dos discursos e, assim, manter o lugar dos “clássicos”, não porque eles são “clássicos”, mas porque, com outros, mas talvez melhor do que outros textos, ajudam a pensar sobre o mundo, natural ou social, a compreender as relações com os outros, a fazer as perguntas essenciais da existência e a desenvolver uma crítica às instituições, às informações, às autoridades.


A forma de dar aula vai mudar por conta das mudanças às quais os livros foram submetidos com o advento da plataforma eletrônica?
Não sei. O que eu sei é que as escolas devem ensinar todas as formas da cultura escrita (manuscrita, impressa, eletrônica), conscientizar os alunos de suas diferenças, e os acostumar a usar uma ou outra forma de escrever, para navegar no mundo dos textos como se faz em uma floresta. Sei também que os objetos eletrônicos inventados todos os dias representam um avanço técnico, mas também são mercadorias, que têm um custo abusivo para muitos e que geram lucros (nem sempre justificáveis por sua utilidade). É também uma lição que as escolas devem ensinar em uma crítica sobre a sociedade de consumo. Mas, é claro, um dos deveres das políticas públicas é tornar essas novas oportunidades acessíveis e familiares. Uma última coisa: nas palavras de Emilia Ferreiro, a presença de computadores ou de tablets em sala de aula não resolve por si só os problemas de aprendizagem e transmissão de conhecimentos – e, ao mesmo tempo, pode trazer a “tentação” de reduzir ou excluir o papel essencial dos professores.


Existem hoje experiências digitais com literatura, a exemplo do escritor norte-americano Robert Coover, que encabeça o movimento de “cave writing”, no qual o “leitor” imerge em um ambiente 3D e interage com o cenário e personagens da história como se vivesse em seu mundo. Isso muda para sempre a forma como se faz literatura?
As experiências de escrita eletrônica, com ou sem 3D, ainda são marginais. E isso porque, provavelmente, se um autor espera de seu leitor a compreensão da obra que ele escreveu em sua coerência, sua identidade, sua totalidade (mesmo sem ler todas as páginas), o livro impresso continua até hoje o objeto material mais adequado para permitir este reconhecimento. Como sabemos, a leitura na frente da tela é fragmentada, descontínua, combina texto e hipertexto, mas não foca a obra em si. Daí a importância ainda marginal (menos de 10% das vendas nos Estados Unidos, menos de 5% nos países europeus) do mercado do livro eletrônico no negócio de venda de livros. Mesmo os autores que praticam amplamente a escrita eletrônica (aquela de blogs, sites, redes sociais) permanecem fiéis à publicação impressa. As experiências que você menciona vão mais longe porque o texto desaparece ou pode desaparecer em favor de um espaço habitado tanto pelos personagens da ficção quanto pelo leitor. O risco não é o de matar por esse realismo do irreal um dos mistérios da literatura, ou seja, o trabalho da imaginação a partir das palavras na página? O leitor parece ser mais livre na medida em que pode intervir na história, mas o preço dessa liberdade aparente não é o da mutilação de sua imaginação, inteiramente sujeita ao espaço definido para ele pelo autor?


Qual é a importância de livros que envolvam experiências digitais hoje para a cultura da leitura?
Uma das maiores mudanças no mundo eletrônico é a possibilidade, pela primeira vez, de associar em uma única produção textos, imagens e até sons e celulares, letras ou música. A cultura escrita deve aproveitar esta oportunidade para inventar “livros” novos, tanto de ficção quando para o saber. Não devemos deixar apenas ao mercado de entretenimento, por exemplo aquele dos jogos eletrônicos, a capacidade inédita de articular diferentes linguagens em um mesmo projeto estético ou intelectual, como fazem, por exemplo, as artes do espetáculo.


No Brasil, há certa desconfiança dos professores em relação aos e-books e a outros meios de leitura eletrônica. Por que o senhor acha que isso acontece?
Esta relutância ou resistência é muito compreensível (e ela é em parte minha também), já que o texto eletrônico desafia as categorias que definem a escrita, o livro, a obra. Quando ele é livre, gratuito, imediato, o texto eletrônico é muitas vezes coletivo, apaga o nome do autor, é fora da propriedade literária, e justapõe fragmentos. Quando se trata de escrever em forma de e-books, com textos publicados por edições que não permitem a cópia ou a impressão e que os “fecham” aos leitores, a relação é mais forte com o livro impresso, e não com a leitura descontextualizada de fragmentos, sem poder ou querer relatá-los na totalidade da qual eles fazem parte. A ruptura com a ordem da escrita que herdamos é forte e brutal, pois ela faz vacilar as noções de autor singular, de obra original e de propriedade intelectual. A consequência é, portanto, que se a escola não deve ignorar as plataformas de leitura eletrônica, ela deve ensinar seus usos e mostrar o que pode ser esperado em relação a formas mais convencionais de comunicação e publicação.


O que países como o Brasil, que ainda lutam com questões básicas como a alfabetização, podem fazer para transformar a leitura em uma prioridade?
O Brasil e outros países comparáveis fizeram ou fazem da entrada na cultura escrita de todos os seus cidadãos uma prioridade justa e necessária. Esta é a chave para que seja estabelecida uma cidadania verdadeira e a possibilidade de um desenvolvimento social e econômico. Mas saber ler e escrever não pode se reduzir a exigências utilitárias. Os livros devem também fazer sonhar, divertir, permitir a reflexão, desenvolver o espírito crítico. A escola deve mostrá-lo, assim como devem acontecer campanhas públicas de instalar o livro e a escrita no coração da cidade, por meio de feiras de livro, encontros nas livrarias, programas nos meios de comunicação visual.


Como um estudioso das tendências de leitura, qual é a sua previsão de como as crianças de hoje vão interagir com a leitura e com os livros como adultos?
Os historiadores são os piores profetas, estão sempre errados. Por isso, vou abster-me de qualquer previsão. Prefiro formular um desejo ou um sonho. Com a era digital e os textos eletrônicos, a humanidade possui uma terceira forma de composição, transmissão e apropriação da escrita, em adição aos dois precedentes: a impressão e a escrita manuscrita. Então, só podemos esperar que se estabeleça a coexistência entre essas três formas, que não correspondem nem aos mesmos hábitos de leitura, nem às mesmas necessidades da escrita. A impressão não removeu a publicação manuscrita, que sobreviveu até o século 19, e talvez mais tarde. A invenção do códice não fez os rolos desaparecerem totalmente nos tempos medievais. Por que a escrita eletrônica ou, mais genericamente, o mundo digital, deveria acabar com o controle manual da escrita, ou com as lógicas que controlam a publicação impressa de um livro, uma revista, um jornal, e que não são da web? A resposta depende, também, da nossa vontade coletiva.

Autor

Carmen Guerreiro


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