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Zona cinzenta

O que pode mudar na postura de educadores ante o acesso irrestrito às informações públicas e privadas de seus alunos por meio das redes sociais 

Publicado em 10/09/2011

por Rachel Bonino

Dos 999 "amigos" que frequentam a página pessoal do Orkut da professora Marta Diogo, 90% são alunos e ex-alunos, segundo cálculos dela própria. Além de receber mensagens carinhosas e elogiosas pelo seu trabalho, a popularidade da docente da rede estadual paulista em Santo André a fez ter contato com informações de conteúdo muito sério: da aluna que admitia, via scraps (página de recados), que se cortava (transtorno borderline), ao menino que, por meio de fotos publicadas em álbum virtual, fazia apologia ao crime organizado. Ela também detectou um grupo de alunos que participava de comunidades virtuais que exaltavam o transtorno borderline e o neonazismo. "Não demorou para aparecerem na escola com coturnos, carecas (skinheads) e ameaçando outros alunos, sempre em grupo", conta. 

No ambiente das redes sociais, as dúvidas éticas foram elevadas ao patamar 2.0. Neste local sem hierarquia, o professor não é uma figura que centraliza as atenções, como acontece em sala de aula. Ele é mais um nas fotos do grupo de "amigos" do Facebook, Orkut, MySpace, entre outras redes por onde os alunos transitam. Nesse quase anonimato, os docentes podem circular por galerias de fotos e recados, e, assim, terem acesso a informações que talvez não chegassem à sala de aula. Mas se por um lado essa aproximação pode estreitar laços entre aluno e professor, pode também transformar o docente em testemunha de atos de conduta questionável ou ilícita – como aconteceu com a professora Marta. São atitudes que vão da admissão em recados ou em comunidades da prática de cola em avaliações até ameaças de organização de brigas entre gangues, tudo isso praticado on-line. 

A violência virtual, aliás, cresce na mesma velocidade que o avanço tecnológico. Uma pesquisa divulgada em maio último, e desenvolvida pela Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana (Ritla), em parceria com a Secretaria de Educação do Distrito Federal (Sedf-GDF), mapeou a cena vir­tual. Dos cerca de 10 mil jovens ouvidos, que estudam em 84 escolas da rede pública de ensino do Distrito Federal, mais de um terço (36,5%) afirma já ter sofrido ciberviolência, e 17,3% já o praticaram. Entre as práticas mais violentas na web, os xingamentos foram os mais comuns (18,3% dos alunos afirmam ter sofrido e 8,4%, praticado), seguidos por invasão de e-mail (13,6% dos alunos já sofreram; 4,4% já praticaram) e fazer-se passar por outra pessoa (12,7 % e e 8,2%, respectivamente). 


Postura


Assim como grande parte dos alunos demonstrou ainda pouco conhecimento sobre as dimensões e consequências dos riscos relacionados ao uso da internet, a pesquisa da Ritla no Distrito Federal constatou também que poucos educadores já refletiram sobre o assunto para escolher qual a melhor forma de orientar os alunos para que façam um uso mais seguro da internet. 

Depois de ter contato com os casos virtuais de violência e com atos eticamente questionáveis, a professora Marta decidiu tomar iniciativas no mundo real: conversou, em primeiro lugar, com os alunos envolvidos. Depois, com a direção, demais colegas e só então com os adultos responsáveis pelos adolescedntes. "Alguns casos foram inclusive encaminhados para o Conselho Tutelar e/ou para a Vara da Infância e da Juventude", conta. 

Mas a decisão da professora, de agir em função dos comportamentos sobre os quais tomou conhecimento via internet, não é aceita consensualmente entre seus pares. A discussão parece ainda incipiente. O que o professor deve fazer diante de uma cena de crime virtual: entrar em contato somente com o próprio aluno envolvido para discutir a atitude? Denunciar o caso para a direção da escola ou mesmo avisar a polícia? Ou deixar essas informações restritas ao ambiente virtual? 
"Demos a ferramenta, mas não ensinamos ninguém a usar", diz a advogada Patrícia Peck, especializada em direito digital, sobre as redes sociais. Ela lembra que o fato de a Justiça já levar para o mundo real casos ilícitos do universo virtual obriga também a escola e os profissionais de educação a se informar sobre o tema. Diante de casos graves de crime ou ameaça, o professor que acessou página com essa informação e não tomou nenhuma providencia a respeito pode ser considerado copartícipe, e responder por isso judicialmente. "Quem cala consente. Digitalmente também. O compartilhamento de informações deu origem a uma solidariedade digital, que pode ser muito perigosa. Assim, a partir do momento que o professor tomou contato com um caso ilícito, ele não tem mais posição isenta", alerta a profissional. Nesse caso, a posição do professor equivale à de qualquer cidadão que tome conhecimento de um ato ilícito.  

Em casos de desvios de conduta, seja ela de qualquer gravidade, Patrícia Peck acredita que a melhor atitude que um docente pode tomar é orientar para uma postura mais adequada ao aluno usando a mesma ferramenta virtual. "Ele pode enviar mensagem para todos os membros da comunidade, ou orientar o autor da ofensa em particular. Dessa forma, não poderá ser acusado de conivência." A atitude do professor, lembra Peck, também deve ser cuidadosa desde o início da interação para que não dê brechas para interpretações equivocadas sobre assédio sexual ou pedofilia.

Patrícia acredita que, mais do que se garantir do ponto de vista legal, cabe ao professor orientar os educandos, mesmo fora do espaço escolar: "Faz parte do papel dele orientar seus alunos mesmo que isso ultrapasse o perímetro da escola. O professor precisa deixar claro ao estudante que mesmo uma brincadeira de mau gosto postada na web gera responsabilidade de seu autor", diz.  

Foi o que aconteceu certa vez no Colégio Bandeirantes, conta a professora Cristiana Assumpção, coordenadora de Tecnologia Educacional. Uma aluna criou a comunidade Gossip Girl, no Orkut. Assim como a narradora do seriado homônimo da TV fechada, a estudante também anonimamente fazia fofocas sobre os namoricos do colégio. Cristiana entrou na comunidade por meio da sua página pessoal e deixou recado indicando que aquela era uma atitude reprovável. Ao fim, pediu que a comunidade fosse excluída. Embora a identidade da aluna nunca tenha sido revelada, o pedido foi atendido. "Mesmo sendo uma ação fora da escola, o acesso às redes sociais faz parte da educação do aluno. A escola precisa se envolver", analisa Cristiana, que coordena curso específico de ética e cidadania digital no colégio.
 

Apoio


Um fator que tende a pesar na postura é a posição da instituição em que trabalha. Foi justamente pelo apoio que recebeu da direção de sua escola que o professor Verner Everton Carmona começou um trabalho de mobilização junto aos alunos sobre os perigos da internet, a importância de preservar sua reputação virtual, deixando de lado atitudes de flagrante desrespeito aos colegas de classe ou aos funcionários, direção ou professores. Tudo começou neste ano, quando um aluno do ensino fundamental da rede pública da Santa Gertrudes (SP), cidade onde leciona em três escolas municipais, "hackeou" a comunidade "Amamos o Prof. Verner", existente há quase cinco anos no Orkut e com cerca de 315 participantes, e mudou o nome dela para "Odeamos o Prof. Verner". Assim mesmo, com erro e tudo.  

O professor encaminhou ofício para a direção para que chamasse os pais do suposto aluno envolvido para esclarecer o que houve. Ficou claro que o aluno envolvido teve a senha do perfil na comunidade clonado. Com o auxílio do professor de informática da escola, o aluno fez uma denúncia do próprio perfil na rede social. Felizmente, a comunidade foi excluída.  
Casos como este revelam o cuidado que professor e escola devem tomar em situações de fraudes envolvendo identidades dos perfis dos alunos, para que injustiças não sejam cometidas. Não se deve considerar a informação postada no ambiente da web como verdade e sair punindo o aluno que informou e os que ele denunciou, por exemplo, sem uma investigação ampla sobre o fato. Além disso, o professor deve avaliar se se sente seguro para fazer uma intervenção direta, via rede, de orientação para o aluno:

"Ele precisa saber se é pertinente, afinal, outros alunos verão também a mensagem, dependendo de onde for postada", alerta Priscila Gonsales, coordenadora-executiva do Programa EducaRede no Brasil, que tem rede social educativa com mais de sete mil membros, administrada pela Fundação Telefônica.

Para a educadora, a escola pode ser mais rígida ou prezar mais o diálogo direto – tanto faz. O que importa é que a instituição se envolva com essa nova ordem educacional virtual, senão ela vai ficar sem saber como se posicionar diante de um caso de desrespeito via web. "É muito cômodo a escola achar que não tem nada a ver com isso. Ela tem de estar no mundo, não é elemento isolado", diz. 

Já a professora Vani Kenski, autora do livro Educação e tecnologias: o novo ritmo da informação (Ed. Papirus), é mais descrente com a postura das escolas frente às novidades tecnológicas: "Não há uma apropriação dessa realidade na organização fechada e duramente oficializada e fiscalizada segundo a politica e a legislação educacional anacrônicas que temos. Dessa forma, mesmo que o professor esteja ‘ligado’ nessa nova realidade social e cultural, não tem espaço nem tempo na escola para lidar de forma significativa com essas questões. Algumas iniciativas pontuais e exemplares são feitas por alguns professores, mas são exceção e pouco repercutem na comunidade educacional da escola ou no contexto educacional mais amplo", diz.  

A apatia da categoria é confirmada por Luiz Gonzaga de Oliveira Pinto, presidente do Sindicato de Especialistas de Educação do Magistério Oficial do Estado de São Paulo: até hoje nenhum pedido de orientação ou questionamento sobre questões éticas ligadas à internet chegou ao sindicato.

Um monitoramento constante das ações extraescola dos alunos deveria ser feito por uma equipe especializada dentro da unidade escolar para traçar e/ou conhecer determinados perfis, na opinião do professor João Rafael Mo­raes de Oliveira, que leciona desde 2007 na rede estadual paulista. "No entanto, os profissionais da educação não estão preparados, e acredito que nem seja do interesse deles trabalhar questões extra-classe. Nesse sentido, trabalha-se num terreno desconhecido, do ‘eu acho’", diz.


Aproximação


Mas nem só de reveses é formada a relação virtual entre professor e aluno. O contato on-line pode ser uma boa chance para o professor dar uma atenção individualizada ao jovem, o que é mais difícil numa sala povoada por 50 alunos. A professora Carlyne Paiva, que dá aulas de português na rede municipal paulistana há quatro anos, tem cerca de 400 amigos virtuais, dos quais 80% são alunos. Ela defende o recurso.

"O Orkut me aproxima dos alunos e melhora a relação em sala de aula. ‘Entro’ na casa deles, conheço a família, as condições sociais por meio de fotos, alguns de seus pensamentos. Isso torna a relação aluno-professor mais profunda. Por outro lado, eles podem perceber que sou ‘tão gente’ quanto eles, quebrando o paradigma de professora e, por incrível que pareça, minha relação com o aluno melhora bastante quando ele se torna meu ‘amigo’ no Orkut. São inúmeros os casos de alunos violentos ou agressivos que mudaram de comportamento em minha aula", conta.  

Dessa forma, é fundamental tratar a internet como espaço social real em que é possível aprender, ensinar, descobrir, mas onde também direitos e privacidade alheios são violados, comprometendo profundamente a socialização e o bem-estar de seus usuários. Quando a escola e o professor entenderem isso, ficará mais fácil discutir as diretrizes possíveis.

Debate na rede 


Diante da confirmação de atitude questionável ou reprovável pelo aluno, expressa por meio de foto ou depoimento na rede, o que o professor pode fazer? Essa dúvida e suas implicações no campo ético foram jogadas em três comunidades virtuais do Orkut, que reúnem docentes brasileiros ("Profissão Professor (a)", "Professoras e Professores", e "Professores"). Ficou claro que o tema ainda merece reflexão entre educadores, coordenadores e direção em geral. Confira alguns depoimentos feitos na rede à questão levantada pela reportagem: 

"Falar à direção? Sim… já falei, como os outros professores que também estão no mundo virtual já falaram, mas a resposta que encontramos sempre foi a mesma: ‘Ainda não está interferindo na atitude do aluno na escola. Não podemos fazer nada. Como vamos impedir o aluno de acessar o mundo virtual?’ (…) Tenho certa liberdade para chegar neles e conversar sobre o que vi, atitudes que são eticamente reprováveis. E, sempre que posso, conversamos sobre vários assuntos – em sala, ou MSN – para que percebam que algumas atitudes podem prejudicar a ele ou a uma outra pessoa."
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Camila Torices Reimão



Professora em duas escolas privadas
São Paulo-SP
 
"Não se deve levar esse tipo de fato para a direção, pois os alunos estão fora do ambiente escolar. Uma conversa com o aluno, em conjunto com outros professores, poderia surtir mais efeito do que um chamado da Direção da Unidade Escolar (que inclusive também está no Orkut)."
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Christian de Mello Sznick



Professor da rede municipal
São Paulo-SP 

"Os alunos frequentemente postam coisas como: ‘quem já pulou o muro da escola?’, ‘quem já pichou a escola?’, ‘qual o professor (a) que você mais gosta’, etc… Acredito que seja interessante conhecer o universo dos alunos por meio de forma indireta, utilizando essa ferramenta, o Orkut. Infelizmente, falta às escolas vontade/condições/empenho/incentivo para que as questões mencionadas sejam realmente trabalhadas."
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João Rafael Moraes de Oliveira



Professor da rede estadual
São Paulo-SP 

"Num dos casos mais recentes, chamei os responsáveis de alguns alunos que publicaram em seus álbuns cenas de envolvimento com bebidas alcoólicas, mulheres seminuas em bailes funk e apologia ao crime e uso de armas. A mãe de um deles considerou normal o comportamento de seu filho de 13 anos passar a noite fora com os colegas para esse tipo de evento."
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Marta Diogo



Professora da rede estadual
Santo André-SP 

Informação para orientar

Antes de orientar, professor e escola precisam eles próprios serem orientados. Por isso, há quatro anos, o Colégio Bandeirantes (SP) pediu apoio ao escritório da Dra. Patrícia Peck, especialista em direito digital, para estruturar cartilha sobre o tema. Hoje, o colégio aplica um curso de ética e cidadania digital com professores e alunos, em todas as séries. "Percebemos que o aluno estava se tornando cada vez mais autor, e também se expondo mais na web", lembra Cristiana Assumpção, coordenadora de Tecnologia Educacional do colégio.  

Num primeiro momento, a cartilha foi distribuída para todos os funcionários, relatando o que a lei diz sobre uso de imagem, difamação, calúnia, entre outros temas. Depois, foram organizadas palestras para os pais. Na sequência, uma segunda cartilha, especial para os alunos, foi elaborada. A partir dela, instituiu-se o curso, que tem três aulas por ano. Ao final de cada período letivo, Patrícia faz uma palestra de fechamento para tirar as dúvidas dos alunos. O colégio também montou uma rede social própria, o Planeta Band, que se tornou um laboratório para identificar a postura dos alunos nesse meio.

"Os professores estão mais confortáveis para falar sobre o assunto com a direção e com os próprios alunos. Os casos que apareceram até agora foram solucionados tranquilamente", diz a coordenadora. 

Autor

Rachel Bonino


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