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Cena do documentário The Lottery, que retrata a disputa por vagas na Harlem Success Academy |
A educação está em pauta na política e nos documentários norte-americanos. Em 25 de janeiro, a população parou para ouvir o State of the Union Address, pronunciamento anual do presidente dos Estados Unidos transmitido por cadeia de televisão e internet, em que o mandatário alinhava as prioridades de sua agenda legislativa, seguindo ritos baseados em princípios da Constituição americana. Neste ano, o tema norteador do presidente Barack Obama foi a educação. Para falar sobre como ela pode ajudar o país, recorreu a uma narrativa histórica para reavivar o sentimento de nação de seu povo. E, seguindo o mito potencializado pelo cinema de Hollywood, de que se trata de uma terra de liberdades, oportunidades e superação.
Ao enfatizar a inovação como característica do norte-americano e apostar na pesquisa e na educação como os passaportes para “ganhar o futuro”, Obama falou dos tempos de Guerra Fria e da corrida espacial entre os Estados Unidos e a União Soviética. Rememorou o lançamento do satélite Sputnik, feito pelos so-viéticos em 1957, antecipando-se aos Estados Unidos na corrida espacial. E a resposta americana, com a criação da Nasa e de um programa espacial até hoje sem concorrentes. “Depois de investir em desenvolvimento e educação, não só superamos os sovié-ticos como desatamos uma onda de inovação que criou novas indústrias e milhões de novos empregos”, disse, num tom que ficou entre a fábula moral e o olhar premonitório.
Novo campo de disputas A narrativa introduziu o assunto que preocupa políticos, educadores e pais nos Estados Unidos: “se queremos que inovação produza empregos aqui na América e não em outros países, é preciso vencer a corrida para educar nossas crianças”, alertou Obama. As palavras do presidente, no entanto, apenas ecoaram uma preocupação já presente no país. Exemplo disso é presença cada vez mais constante de produções audiovisuais, sobretudo documentários, versando sobre o tema. No ano passado, foram muitos os títulos veiculados pela TV e pela internet que discutem questões atuais do sistema de ensino.
Rachel Grady, diretora do segmento Can a 9th grader be bribed to succeed? (Pode um aluno da nona série ser subornado para ter sucesso?, em tradução livre), parte integrante do documentário Freakonomics, crê que o tema “educação” é “sempre fértil” no campo documental, já que uma percepção de crise do sistema público existe desde os anos 70.
“Se você assistir aos documentários sobre educação dos anos 80, parecem filmes contemporâneos, a não ser pelas roupas das pessoas”, comenta Grady. Para Kelly Adams, educadora que hoje produz documentários por meio de um projeto sem fins lucrativos, a economia também despertou o público para o tema. “Com tantas pessoas perdendo seu emprego, a segurança que um professor, que é um funcionário público, tem hoje nos Estados Unidos chamou a atenção da população”, diz Kelly, sem fazer menção aos tantos professores que estão perdendo o emprego por meio de agressivas políticas de qualidade na educação.
Um rápido exercício de memória permite listar ao menos seis documentários (Waiting for Superman, Race to Nowhere, The Lottery, 2 million minutes, Cartel e o já mencionado segmento do documentário Freakonomics) e quatro programas de televisão (Learning Matters, da PBS; Education Nation, da NBC; Ten9Eight: Shoot for the Moon, documentário que foi ao ar no canal BET; e Black in America e Latino in America, ambos da CNN, que também falam das questões educacionais). São, em sua maioria obras de diretores preocupados com as falhas do sistema público, ou em testar soluções e resultados, ou ainda pais e educadores que decidiram compartilhar suas experiências, lançando mão da facilidade de captação em formato digital.
Guerra de trincheiras “Documentários são produzidos não para o lucro, mas pela paixão que cineastas têm pelo assunto em foco”, diz o renomado crítico Leonard Maltin, autor há mais de 30 anos de guias de filmes que levam seu nome, identificando uma característica do gênero, que é a de ser uma trincheira para a defesa de convicções.
Chad Troutwine, produtor de Freakonomics, aposta no retrato do mundo real como uma maneira de abordar temas sociais importantes com um orçamento mais barato. “Há um fator econômico. Filmes narrativos sobre assuntos sérios não recebem o retorno financeiro esperado. O documentário pode ser uma alternativa mais barata para abordar um tema como educação, pois usa uma equipe menor, imagens de arquivo, e não há atores. Além do que, tem grande poder de persuasão”, explica.
Entre os filmes de maior impacto deste ano está Waiting for Superman (Esperando pelo Super-Homem). Dirigido por David Guggenheim, vencedor do Oscar por Uma verdade inconveniente – com o ex-vice presidente Al Gore, sobre o aquecimento global -, lidera a lista de fitas sobre educação e ganhou o prêmio do público no Festival de Sundance em 2010.
Assim como The Lottery (A loteria), Waiting for Superman obteve classificação para a lista dos finalistas do Oscar, uma etapa anterior à lista dos indicados em cada categoria. Os dois títulos representam, ao dar espaço a entrevistados como John Klein, ex-conselheiro das escolas públicas de Nova York, e Michelle Rhee, superintendente do Distrito de Columbia em Washington, a perspectiva de um movimento pela reforma do sistema escolar público americano. Em entrevistas, Guggenheim diz que, para ele, o projeto não é só um filme, “é uma causa”.
Waiting for Superman assume claramente esse lado “trincheira”: convida espectadores a tomar atitudes sobre o assunto nos créditos finais, pede doações para salas de aula e reivindica bons professores. A comunidade do filme no Facebook congrega mais de 130 mil pessoas. Durante o mês de março, convidou cidadãos e instituições interessados no debate a organizar exibições do filme chamadas DVD House Parties, que aconteceram por todo o país.
O filme retrata a vida de quatro famílias em Los Angeles, Washington D.C., Vale do Silício, e Nova York, cuja intenção é fazer com que os filhos ingressem em boas escolas públicas. Guggenheim traça o contexto histórico e numérico de um sistema público de educação desatualizado e claudicante, com problemas estruturais e alto índice de evasão.
Foca, ainda, a falta de opção de pais e alunos, as dificuldades de responsabilizar professores das escolas públicas (em sintonia com o clima de caça às bruxas prevalente mundo afora) e o custo da burocracia.
O cineasta aposta no modo documental performático, expondo sua experiência na tela: leva os filhos a uma escola privada e explica que não pode correr o risco de colocá-los em uma escola pública. Ele busca ampliar o contexto do sistema de educação norte-americano para o cinema focando famílias que não têm a mesma escolha e que “colocam a educação e o futuro de suas crianças nas mãos da sorte”.
O diretor refere-se ao que considera a principal metáfora do filme: as loterias estipuladas por lei para escolas que têm um número de candidatos bem maior do que de vagas, situação comum para as escolas públicas mais disputadas da rede, por seus alunos terem bons índices de proficiência em matemática e leitura, o que representa uma maior possibilidade de ingresso em universidades.
Mundo de apostas Da loteria também vem o título e foco central de outro documentário lançado no Tribeca Film Festival, de Nova York: The Lottery (A loteria). A película retrata a vida de quatro famílias por três meses antes do sorteio da Harlem Success Academy, escola charter localizada no bairro nova-iorquino do Harlem. É uma das mais disputadas do estado: 475 vagas e 3 mil candidatos no ano retratado, ou 6,3 candidatos por vaga. Trata-se de um típico exemplo de documentário panfletário: joga com estatísticas para fazer uma defesa das escolas charter e das práticas de responsabilização.
Os fundadores da escola charter que aparece em tela são entusiastas da reforma do sistema escolar, tal como tem sido levada a cabo em Nova York. Dizem que escolas que produzem sucesso acadêmico são uma ameaça às regras do sistema público e aos sindicatos de professores, por causa de sua administração independente. Ou seja, colocam em xeque o status quo e o domínio sindical.
Waiting for Superman constrói um retrato mais complexo do sistema e tenta mostrar como ele afeta o destino das crianças. O diretor chama a atenção para a ausência de melhora no desempenho escolar norte-americano. A narrativa ressalta o fato de que, depois de oito anos do programa federal No Child Left Behind (que tem como objetivo ter todos os alunos proficientes em matemática e leitura em 2014), a maioria dos estados do país não chega a ter 50% de seus alunos proficientes em matemática. Os números chegam a 14% no Mississipi e 24% na Califórnia, por exemplo.
O desempenho começa a patinar entre a 5ª e a 7ª série do fundamental. Em função dessa informação, o filme acompanha uma adolescente de Los Angeles e mostra seu processo de fracasso escolar, que a leva a começar o ensino médio com idade defasada. Entre aqueles que, como a estudante, sofrem do mesmo problema, a metade deverá abandonar a escola antes de se formar. Guggenheim chama essas escolas de “fábricas de abandono escolar”, mostrando que o colégio de ensino médio retratado deixou de formar cerca de 40 mil alunos nas últimas quatro décadas. Também aqui há ênfase na questão da dificuldade de demitir um professor em função das garantias trabalhistas previstas em lei.
Experimentos Outros filmes fogem de questões políticas e acompanham as iniciativas independentes e localizadas para melhorar o sistema educacional. Pode um aluno da 9ª série ser subornado para ter sucesso?, parte do documentário Freakonomics, registra um experimento de economistas, em que alunos de um distrito pobre de Illinois foram submetidos a incentivos financeiros para que se pudesse avaliar se haveria melhora em seu desempenho escolar. No filme, os economistas acompanham a trajetória de dois desses alunos, que têm a possibilidade de ganhar US$ 50 por bimestre.
Mais do que comprovar se o experimento com incentivos produz ou não resultados, o filme discute a relação dos alunos com a escola hoje e busca mostrar a ação dos pesquisadores no momento em que ela se dá. Também cita um estudo que serviu de base para o documentário, feito com dados do sistema público de Chicago, sobre professores que modificaram as notas de seus alunos para receber incentivos das escolas onde trabalhavam. “Mas queríamos mostrar os economistas no meio de um experimento e não concentrar o filme em questões políticas. Por isso, a história dos professores que “colam” não está completa no filme”, explica Chad Troutwine.
Assim como no episódio de Freakonomics, o que está em primeiro plano e o que é incidental parecem se embaralhar nas diversas aparições do mundo da educação nas telas. Com visões que marcam pontos de vista específicos, os filmes parecem deixar escorrer para fora das narrativas o que é essencial, ao mesmo tempo que retêm o lugar-comum do momento.
Os “educadores cineastas”
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A força dos documentários na mídia norte-americana inspirou pais e professores enfrentando dificuldades com o sistema a trabalhar com uma câmera na mão. Kelly Adams, ex-professora da rede pública em Los Angeles e mestre em educação pela Universidade de Stanford, resolveu tornar-se produtora e editora de Teached, documentário que será lançado em 2011 e acabou dando origem a um projeto multimídia. “Depois de vinte anos lecionando, estou frustrada com tão poucas mudanças e crianças praticamente sendo jogadas fora nas regiões urbanas do país. Pensei, então, que histórias reais poderiam ocupar o lugar de estatísticas e fazer o público entender o que acontece nas escolas hoje. E o quanto tudo isso é injusto”, diz Adams.
Teached ambiciona conscientizar pessoas sobre a desigualdade presente no sistema de educação pública do país. Depois de começar o projeto e enfrentar os percalços de uma produção independente financiada por meio de doações, Kelly decidiu trabalhar com filmes de curta metragem na internet: “enquanto ainda filmamos o documentário, vamos exibir outros formatos on-line, para retratar questões mais específicas e facilitar o acesso do público aos vídeos”, explica.
O primeiro curta a ser lançado aborda o grande número de homens negros em prisões hoje no país. Diferentemente de Waiting for Superman e The Lottery, que comparam os US$ 37 mil anuais gastos com cada preso no país aos US$ 9 mil dólares anuais por estudante, Adams foca seu trabalho nas experiências educacionais de um jovem negro condenado aos 16 anos e que cumpriu 10 anos de prisão. “O curta se chama O caminho para a prisão e questiona o que acontece nas escolas urbanas norte-americanas para tantos meninos acabarem na prisão”, reflete Kelly.
Já Vicki Abeles, advogada que mora na Califórnia e cujos filhos têm uma educação acima da média da população, também decidiu virar documentarista e iniciar um debate sobre a atual cultura de competição e desempenho. Sua história familiar transformou-se no documentário Race to Nowhere (Corrida para lugar nenhum). O filme foi lançado em festivais e tem sido exibido em igrejas, escolas e instituições independentes que organizam debates, seguindo a linha de Waiting for Superman.
Depois de enfrentar problemas de saúde com uma de suas filhas, causados por estresse segundo diagnóstico médico, Vicki decidiu registrar histórias de crianças e jovens, incluindo seus filhos, pressionados a ter bom desempenho, a realizar atividades extracurriculares e a construir uma trajetória escolar que permita o ingresso nas melhores universidades do país. O filme chega a incluir exemplos de distúrbios alimentares, depressão e um caso de suicídio de uma aluna da 8ª série da comunidade de Vicki, decorrente de uma nota baixa em matemática. O documentário também aborda questões como cola, a dificuldade de professores de expandir o conteúdo por causa de testes, o excesso de tarefas de casa e a exagerada expectativa dos pais, que chegam a planejar a educação dos filhos de acordo com o que esperam que eles venham a ganhar.
Karin Janicks, mãe de duas alunas do ensino fundamental na Carolina do Sul, participou de uma exibição do filme em uma igreja com as filhas e achou que precisava de mais dados concretos. “Conversei com as minhas filhas sobre as histórias e achei um pouco exagerado. Mas esse foco em desempenho e universidades é real. Os pais devem ser mais realistas e não forçar seus filhos a seguir um mesmo modelo.”
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Autor
Luisa Leme, de Nova York