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Trem das onze

Difentemente do samba de Adoniran Babosa, em que o retorno par casa se devia à solidariedade do filho, agora a obrigação de chegar cedo é resultado de decisão de juízes de cidades do interior paulista

Publicado em 10/09/2011

por Celso Kinjô





O "Bonde do Conselho Tutelar": menores que estavam na rua após às 22h em Fernandópolis(SP) são encaminhados à instituição (Foto: Eduardo Anizelli / Folha Imagem)


Em seis pequenas cidades do interior paulista, os menores de idade agora têm hora certa para voltar para casa, sob pena de serem levados para os Conselhos Tutelares locais e de lá só saírem sob a guarda dos pais. As medidas, derivadas de decisões de juízes locais, buscam atender ao clamor da população para controlar o que lhes parece incontrolável: a circulação das crianças e adolescentes e sua exposição à violência e ambientes em que têm contato com drogas, álcool e marginalidade. Mas, se a alguns a solução parece o exercício de normas legítimas, a outros soa como uma intromissão do Estado, acrescida da assunção de sua incapacidade de fazer o que deveria: proporcionar segurança no espaço público. As avaliações dos especialistas conduzem quase a um conflito ideológico, para não redu­zir o tema a um simplista confronto de gerações.

Pessoas vividas, mas angustiadas com as mudanças vertiginosas na sociedade, veem o assim chamado ‘toque de recolher’ como positivo, caso do jurista Dalmo de Abreu Dallari, membro do Conselho Nacional dos Direitos Humanos. "Essa medida fazia falta, e é rigorosamente legal. A medida não impede a criança nem o adolescente de saírem à rua durante a noite. Não pode é sair sozinho. Pela Constituição, é dever da família e do Estado colocar criança e adolescente a salvo de toda forma de exploração e violência. As medidas cumprem um dever constitucional e têm amparo em disposição expressa na lei de menores", afirma Dallari.

A psicanalista Anna Verônica Mautner endossa as portarias. A primeira, baixada em 2005 pelo juiz da Vara de Infância e Juventude de Fernandópolis, 554 km da capital, Evandro Pelarin. A outra, em abril passado, pelo juiz Fernando Antonio de Lima, de Ilha Solteira, distante 680 km de São Paulo. "Se o jovem não tem horário para voltar para casa, o Estado pode discernir e estipular regras. Por exemplo, o Estado pode discernir sobre o barulho à noite, ou sobre a capacidade de guiar um carro. Essas regras existem e ninguém reclama.  No capítulo do uso de drogas, o Estado estabelece imposições claras, porque a criança é mais influenciável que um adulto, por hipótese. Temos, por isso mesmo, instituições encarregadas dos direitos da infância e da adolescência, o que não acontece com os adultos."


Estado e família


A psicanalista diz não ser "inteiramente contrária" à intervenção do Estado na vida da família, até porque esta "não vem dando certo". E fundamenta a afirmação: "Os pais estão perdidos, como a humanidade, diante de um mundo diferente, em que temos de encontrar outras formas de educar os filhos".

João Eduardo Perea Martins, professor do Departamento de Computação da Unesp de Bauru, cidade de 355 mil habitantes, a 350 km de São Paulo, também avaliza a restrição. Indagado sobre a importância de um adolescente viver experiências, questiona: "As experiências são importantes na formação do individuo,? mas devem ser proporcionais ao seu grau de amadurecimento e?capacidade de discernimento. Expor um jovem a uma experiência que está acima da sua capacidade emocional de gerenciamento pode ter consequências extremamente graves para a sua formação. O ideal é que o jovem aprenda a encarar os desafios da vida de forma madura e? equilibrada, o que é muito difícil quando tentamos um?amadurecimento precoce".

Martins defende que a interdição de acesso ao espaço público, nas circunstâncias dadas pelas portarias, é uma interferência positiva, pois permitiria aos jovens desenvolver mecanismos próprios de discernimento sobre as questões que têm mais recorrência – e que causam maior medo social: agressões, uso de álcool e de drogas.

Outro docente do campus da Unesp, em Bauru, a psicóloga Sandra Leal Calais, concorda que menores necessitam de regras e limites. Cita índices de acidentes envolvendo adolescentes em sua cidade e credita aos pais grande parte do problema, pois são eles que, por exemplo, ensinam a dirigir antes do tempo. Para ela, é importante refletir sobre o toque de recolher: "É o momento de rever tudo. A gente não deveria ter chegado até aqui, tínhamos de ter resolvido antes. Mas por onde começar?"

O dilema, tão antigo quanto a família, remete à visão do Estado como ente moderador da sociedade. A autoridade pode limitar a liberdade de ir e vir, atropelando o pátrio poder, em nome da preservação do menor e seu direito à educação?  "Adotei a medida por pressão social", diz o juiz Fernando Antonio de Lima, de Ilha Solteira. "Professores me contaram que os alunos estavam perdendo rendimento e se comportavam mal na sala de aula; pais diziam que não conseguiam controlar os filhos. Abri a discussão para a comunidade, fiz 16 reuniões e cheguei à conclusão de que o melhor seria mesmo restringir o horário", relembra.

Ilha Solteira, 25 mil habitantes, tem 7,5 mil menores. O juiz comandou pessoalmente as primeiras blitze, e relata: "Pude ver a molecada até as 2h da madrugada conversando, ou fazendo uso de bebida alcoólica e drogas. No dia seguinte, dormiam na sala de aula". Fernando Antonio de Lima diz que só os menores em situação de risco são recolhidos e que ninguém é impedido de voltar para casa de um curso ou da escola, muito menos se "saiu para ir à casa de um parente". Defende a aplicação da norma com "bom senso".


Além de suas funções


Para o advogado Oscar Vilhena, professor da FGV e diretor da Conectas Direitos Humanos, a Justiça exagera e vai além de seu papel constitucional. "Exerce uma função legislativa, que não é atribuição do Judiciário, ainda que se possa concordar com isso e com efeitos positivos nos índices de crime", explica Vilhena. "O problema, aí, é de usurpação de função legislativa", continua, lembrando que o ato só valeria se estipulasse locais de restrição, como bares ou lanhouses (em Ilha Solteira, menores de 16 anos têm acesso proibido, a qualquer hora).

"O juiz da Vara da Infância e da Juventude", prossegue Vilhena, "não pode criar obrigações além daquelas estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. E não pode competir com o Legislativo". O advogado propõe medida alternativa, adotada com sucesso em Diadema e outros municípios da Grande São Paulo: "Se você tem regiões de risco, como Caraguatatuba, São Sebastião, onde é perigoso andar durante a madrugada, talvez o correto seja criar uma regra pela própria municipalidade, proibir venda e consumo de bebida alcoólica depois das 11 da noite." É o que fazem países como Inglaterra, Cingapura e Dinamarca.

Até o governo paulista critica a proibição. Para o secretário-adjunto de Justiça, Isaias Santana, o ECA já é suficiente. "E os órgãos de segurança dos municípios, empregados em blitze para recolher menores, devem cuidar é da ocupação de espaços públicos, jamais tolher a liberdade dos indivíduos, sejam eles adultos ou adolescentes."


Trabalho ou lazer?


O sociólogo Fábio Villela, da Unesp São José do Rio Preto, a 450 km da capital, sede da região administrativa que abriga Fernandópolis e Ilha Solteira, compara o toque de recolher a tratar um doente terminal com aspirina. "Não atinge o núcleo do problema, que é outro. O trabalho é uma questão central da sociedade. Se o ser humano não tem um trabalho digno, o pai vai encher a cara. Depois bate na mãe, no cachorro, nos filhos. Vivemos numa sociedade que demanda menos trabalho, e a família se desestrutura."

Villela enxerga um viés classista na portaria, pois os jovens de classe alta e média têm abrigo em clubes ou lojas de conveniência. Já aqueles de classe média baixa ou pobres ficam mais expostos, pois não têm opções de lazer.

Para o sociólogo, a escassez de oportunidades profissionais para os jovens é um elemento complicador, tanto do ponto de vista da carreira, como de sua formação. "Sempre falo para meus alunos: não funciona ir à luta pelo emprego só depois do diploma, porque se você passa boa parte da vida sem trabalhar, até os 21, 22 anos, dificilmente encontrará colocação. O trabalho digno dá sentido ao indivíduo. Para a sociologia, a sociedade está seriamente doente se não oferece trabalho a seus indivíduos", diz.

A psicanalista Anna Verônica Mautner tem visão diferente. No fundo, acha vital um aprendizado de todos, menores, adolescentes, adultos, aposentados, em torno do que fazer. Cunha a expressão fazer-lazer para esmiuçar sua proposta. O jovem e o aposentado devem aprender o que chama de lazer criativo. Para ela, o toque de recolher não significa confinamento, e sim uma oportunidade de lidar com o próprio tempo.

"Não são só os adolescentes que não sabem ocupar seu tempo. Na adolescência, temos toda liberdade, porque depois entramos no rito do trabalho, no mundo adulto. Lá na frente, quando o sujeito se aposenta, o dilema está de volta. Qual é o aposentado que se ocupa bem do próprio tempo, que não seja simplesmente fazer ginástica ou passear na pracinha? Depois de se aposentar, a verdade é que a gente não sabe o que fazer com a gente mesmo", postula.

Mas enquanto os pais não sabem o que fazer em casa com os filhos, tampouco o Estado ou os governos sabem, pois a medida continua a ganhar adeptos, Avaré e São Sebastião, no interior e no litoral paulista, respectivamente, são candidatas a instituir a medida.  Em Mato Grosso do Sul e no Paraná, alguns municípios examinam a proposta. A polêmica vai aumentar.

Autor

Celso Kinjô


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