Abertura de capital na bolsa de valores e venda de material didático a escolas públicas e privadas sinalizam chegada de instituições com novo perfil ao universo educacional
Publicado em 10/09/2011
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Quais são os impactos do ingresso dos fundos financeiros na educação brasileira? A pergunta remete a um processo recente e que começa a despertar o interesse de pesquisadores na medida em que sinaliza para um fenômeno que pode modificar a configuração da educação no país. Um dos vestígios mais evidentes dessa nova dimensão da educação são os valores movimentados pela educação privada no país, que passaram de cerca de R$ 10 bilhões em 2001 para R$ 90 bilhões em 2008, aumento de 800% em sete anos. Talvez nenhum setor da economia tenha índices parecidos.
Romualdo Portela, professor do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, é um dos pesquisadores que tem se dedicado a analisar o fenômeno. Num estudo recente, Portela vê na chamada "financeirização" a transformação da educação em mercadoria. Mais: vê uma tendência de concentração das matrículas em poucas instituições, o que cria um movimento de "oligopolização", antes restrito ao mundo das empresas. Representantes do segmento privado, em contrapartida, definem o quadro como sendo de "profissionalização", como é o caso do vice-reitor da Universidade Positivo, José Pio Martins.
Tradicionais sob risco
"É um processo com implicações bastante grandes, algumas já perceptíveis", analisa Portela. Além da já apontada concentração de matrículas, outro efeito é a fragilização de instituições de ensino tradicionais. No campo do ensino superior, em que o fenômeno tem sido mais intenso, Portela cita o exemplo da PUC-SP e a da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), ambas tradicionais e conhecidas pela qualidade do ensino ofertado e que acabaram sendo prejudicadas nos processos de aquisições de instituições – muitas vezes movimentados pelo ingresso de capital estrangeiro, que levam a um acirramento da concorrência com novos parâmetros de excelências – às vezes mais econômicos que acadêmicos.
As aquisições e os processos de gestão engendrados pelas novas instituições que entraram em cena possibilitaram a proliferação de unidades e a cobrança de mensalidades mais baixas, atraindo mais alunos. Ou seja, é o famoso princípio da economia de escala adentrando o campo da educação. O efeito imediato desse tipo de ação é o esvaziamento das salas de aula das instituições renomadas. "Há uma desestabilização das instituições consolidadas", analisa o professor da USP. E, embora seja mais visível e esteja ocorrendo de maneira mais intensa no ensino superior, a "financeirização" também está ganhando espaço na Educação Básica.
Um dos casos mais recentes que vieram a público foi a aquisição do Colégio Pueri Domus, em julho último, uma das escolas mais conhecidas de São Paulo, pelo Sistema Educacional Brasileiro (SEB), que já era proprietário das marcas COC, Dom Bosco, entre outras. O SEB agrupa 31 unidades educacionais próprias. O negócio movimentou R$ 41 milhões, dos quais cerca de R$ 8 milhões eram referentes à dívida do Pueri Domus. Em outubro, o SEB comprou o Colégio Monet, localizado em Lauro de Freitas, município da região metropolitana de Salvador. O material institucional do SEB reitera que a aquisição "possibilitará um crescimento expressivo da base de alunos naquela área nos próximos dois a três anos". O Monet, na época da compra contava com 416 alunos e uma receita líquida na faixa de R$ 3 milhões. O SEB possui capital aberto em bolsa desde 2007, o que possibilitou que o grupo captasse R$ 250 milhões. Desse total, aproximadamente R$ 190 milhões foram destinados à aquisição de escolas. O grupo anuncia que ainda possui cerca de R$ 90 milhões em caixa para investir em novos negócios.
Franquias
Paralelamente à compra de instituições educacionais, outro movimento – mais antigo e que vem se fortalecendo no cenário atual – é o das chamadas "franquias educacionais". Nesse sistema, uma matriz vende seu material didático, suas metodologias e presta assessoria a escolas conveniadas. O caso clássico é o do Objetivo, que começou suas atividades na década de 1960 como cursinho pré-vestibular. Atualmente, conta com pouco mais de 400 mil alunos em 44 unidades próprias e 368 escolas conveniadas.
O Objetivo integra a lista dos maiores grupos educacionais do país, junto com Positivo, Pitágoras, COC e Pueri Domus (este recém-adquirido pelo grupo ao qual o COC já pertencia). Estima-se que esses grupos detenham aproximadamente 20% das matrículas no ensino fundamental e médio na rede privada, o que representa 1 milhão de alunos.
Entre esses grupos, o Positivo destaca-se na venda de material didático. De acordo com informações do próprio grupo, 2 mil escolas, responsáveis por 510 mil estudantes, utilizam o Sistema de Ensino Positivo. O faturamento em 2008 foi calculado em R$ 240 milhões. Há ainda 11,5 mil alunos nas escolas e cursos pertencentes ao grupo, além de 13,5 mil estudantes de graduação e pós-graduação na Universidade Positivo, segmento em que o grupo também atua.
Para José Pio Martins, vice-reitor da Universidade Positivo, a aquisição de instituições e a abertura de capital na educação privada brasileira remetem a um processo de profissionalização. "A educação não é uma mercadoria, mas a oferta de uma educação de qualidade envolve custos com pessoal, com material, equipamentos", afirma. A captação de recursos por meio da venda de ações na bolsa de valores seria, então, uma maneira de levantar o capital necessário para os investimentos, raciocina.
Nesse sentido, Martins considera que é o próprio arcabouço legal que regula a educação brasileira, aliado à falta de capacidade de investimento do Estado, que explica o cenário atual. Isso porque a Constituição de 1988 estabeleceu que o ensino é livre à iniciativa privada. "Durante a década de 1990 houve um crescimento desordenado do setor privado, que está na origem do processo que vivemos atualmente", analisa. Assim sendo, o atual processo de aquisição de grupos educacionais consiste em uma espécie de ajuste do que ocorreu no passado. Na opinião do vice-reitor, a tendência é que o setor privado se organize em grandes grupos e em instituições de pequeno porte.
Críticas
A venda de material didático para instituições de ensino conveniadas e também para sistemas públicos de ensino – tendência quem vem ganhando força recentemente – é criticada por vários estudiosos no campo das políticas educacionais. Esse último movimento se apresenta, do ponto de vista econômico, como inevitável, já que o mercado privado na Educação Básica se mantém estável em torno de 13% do total, enquanto milhares de pequenas e médias prefeituras, sem histórico de formação e capacitação de educadores, se viram órfãs dos sistemas estaduais.
Para os pesquisadores, a questão é que esse tipo de transação acarreta uma padronização dos métodos e conteúdos, desconsiderando-se as especificidades locais. As pesquisadoras Thereza Adrião e Vera Peroni, professoras da Universidade Estadual de Campinas e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, respectivamente, que se dedicam ao estudo das relações entre a educação pública e com o setor privado, consideram que, nesse modelo de relacionamento, a "propriedade" da educação permanece estatal, mas o setor privado acaba por definir a gestão e o conteúdo, ferindo a autonomia do trabalho docente e a democracia da educação.
"A descentralização, a autonomia da escola e a participação foram as bases do debate sobre a gestão democrática da escola nos anos 1980", afirma Vera. "Hoje, porém, esses conteúdos ocultam a desresponsabilização diante do quadro educacional do país", complementa a pesquisadora e professora de pós-graduação da Faculdade de Educação da UFRGS. Para ela, esse processo não é isolado, mas se insere no contexto da crise do capitalismo. Tendo esse cenário
como pano de fundo, ao adquirir material didático de um grupo educacional privado, o poder público está envolvendo o sistema de ensino em uma proposta elaborada por "segmentos não vinculados à educação local". "Em nome de uma maior competência técnica, esses grupos substituem o compromisso da gestão pública na elaboração e no desenvolvimento das políticas educacionais", analisam as pesquisadoras no artigo "A educação pública e sua relação com o setor privado: implicações para a democracia educacional".
O vice-reitor da Universidade Positivo analisa a problemática por outro ângulo. Para ele, a padronização é imposta pelas próprias políticas educacionais, por meio das diretrizes curriculares do Conselho Nacional de Educação (CNE). "As diretrizes impõem as linhas gerais que todo o material didático usado em escolas deve seguir." A partir de 2006, o Positivo passou a ter um material didático destinado às redes públicas de ensino. O sistema é adotado por 1,5 mil escolas em 144 municípios brasileiros. Calcula-se que 270 mil alunos estejam usando esse material em sala de aula. Além dos livros, as escolas e redes que fazem a adesão ao sistema têm direito a utilizar um portal educacional, os professores recebem formação e os gestores podem se valer dos serviços de uma coordenação pedagógica.
Aumento de escopo
O Positivo não é o único grupo a atuar nesse mercado: COC, Objetivo e Pitágoras também "têm avançado sobre os sistemas públicos de Educação Básica", nos termos do professor e pesquisador da USP Romualdo Portela. Esses materiais apostilados têm um tratamento diferente daquele dispensado ao livro didático no que se refere ao controle público sobre sua qualidade. Enquanto os didáticos têm de passar por avaliação delegada pelo Ministério da Educação a instituições universitárias para sua compra pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), os apostilados são adquiridos diretamente pelas prefeituras, representando um custo adicional para o município. Isso porque, quando optam pelos didáticos, estes são distribuídos pelo MEC gratuitamente para as redes de ensino públicas.
Se, de um lado, há críticas à utilização do material didático produzido por grupos privados em escolas públicas, de outro, algumas pesquisas recentes demonstram que os alunos que estudam em escolas que adotam essas apostilas tendem a ter um desempenho melhor na Prova Brasil. Esse fato é utilizado pelos grupos para reiterar a eficiência dos materiais produzidos por eles – argumento com o qual os defensores do fortalecimento da autonomia das escolas obviamente não concordam. Pesquisadores como o professor José Francisco Soares, da UFMG, no entanto, ponderam que a questão central aí é outra: a existência de material comum a toda a rede permite, entre outras coisas, estabelecer objetivos educacionais e unificar a formação docente, trabalhando sobre os mesmos conteúdos.
Mas Romualdo Portela ressalta que a venda de material didático e do pacote de serviços é apenas uma das linhas de atuação dos grupos educacionais em seu relacionamento com os sistemas públicos. Ele lembra o caso da rede pública de São José dos Campos que, graças a um financiamento do Instituto Embraer, firmou um convênio com o grupo mineiro Pitágoras para desenvolver e implementar um modelo de gestão. Tal modelo já está sendo aplicado em Sorocaba "Passa-se, assim, da venda para a definição da gestão do sistema público", analisa Portela, que considera que, embora o movimento de aquisições de instituições educacionais por grandes grupos tenha "esfriado" recentemente, a tendência é que ele volte a se intensificar com o reaquecimento da economia.