NOTÍCIA

Políticas Públicas

Olhares para a pobreza

Em um país com 26,8 milhões de crianças e jovens que vivem em lares com renda de até meio salário mínimo, a oferta de ensino de qualidade exige políticas públicas que os enxerguem de fato

Publicado em 10/09/2011

por Ensino Superior






Os alunos do campo precisam de abordagens pedagógicas específicas, apontam especialistas

Ele era mulato, pobre, doente, não morava com sua mãe, estudou pouco e aos solavancos, sofria de gagueira e epilepsia. Se excluíssemos a tartamudez e os surtos epiléticos, esse perfil poderia ser atribuído a um dos 28,6 milhões de crianças e jovens com idade entre 0 e 17 anos que vivem em lares com renda per capita de até meio salário mínimo (R$ 272,50) – ou 45,6% do total nessa faixa etária, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mas ele era Machado de Assis, reconhecido como um dos maiores autores da literatura brasileira, e que se tornou quem foi à custa de seu gênio e das relações que fez. Escritores geniais são muito raros. Contudo, a frequência de crianças e adolescentes que vivem em condições graves de pobreza, em famílias desestruturadas, com problemas de saúde e em ambientes de violência é assustadora, e o Brasil corre o risco de se conformar com a propagação de um chavão acadêmico, que assim reza: “o contexto social é um dos fatores que mais tem impacto nas possibilidades de aprendizagem das crianças e adolescentes”.

Não que essa condicionante cruel do desenvolvimento da criança seja falsa. Há literatura farta sobre o assunto, lembra o pesquisador Francisco Soares, que tenta, em seus estudos, isolar as diferentes variáveis que influem na aprendizagem. “Sabemos que as chances de aprendizado são delimitadas socialmente. Todos podem aprender, mas os que têm famílias de maior capital cultural aprendem mais e mais rápido”, diz. Os estudos vêm avançando até mesmo no cálculo do tamanho desse impacto.  Já se sabe, segundo Soares, que, em média, apenas 15% da variação das notas dos alunos referem-se exclusivamente à influência do trabalho da escola – pensando em escolas que funcionam bem, como todas deveriam funcionar. “No Brasil, elas são tão diferentes entre si, que as notas podem variar até 45% segundo a qualidade do trabalho da instituição”, diz. Outros estudiosos, como o economista Marcelo Néri, da Fundação Getulio Vargas, atribuem até 70% do desempenho ao que os teóricos chamam de background familiar. “Isso é frustrante para quem faz política educacional, para dizer o mínimo”, afirma Néri, um dos pesquisadores que se dedica à análise da inter-relação entre renda e educação no país.

Na prática, isso significa que o problema da qualidade nas instituições de ensino brasileiras é tão profundo que as limitações impostas pelo ambiente cultural são somadas à ineficiência da escola, produzindo defasagens cada vez mais difíceis de superar, na medida em que crianças e adolescentes avançam na escolaridade básica. Basta uma olhada nos números para compreender o que isso significa. Atendendo a um pedido da revista Educação , o economista Ernesto Martins Faria, editor do portal Estudando Educação, ealizou uma série de cruzamentos, por critérios que permitem associar as respostas ao contexto socioeconômico, destrinchando informações dos questionários da Prova Brasil 2006 (o último com dados brutos disponíveis) e do Pisa 2009, apresentados ao longo da reportagem.

Dividindo os dados de alunos que participaram do Pisa em faixas socioeconômicas, é possível ver o profundo gap associado às condições sociais. No 5º ano do ensino fundamental, na área de língua portuguesa, a diferença de pontuação entre a faixa mais baixa e as demais chega a 12,2 pontos, e em matemática a 13,9 pontos. No último ano do ensino fundamental, a defasagem é de 11,3 pontos, em língua portuguesa, e 14,1 pontos, em matemática. Segundo Faria, como pesquisadores estimam que a aprendizagem de um aluno ao longo de 1 ano equivale a 12 a 15 pontos na escala, os dados indicam que as crianças e jovens das classes socioeconômicas mais baixas estão cerca de um ano atrasados em relação aos colegas.

Os números são fortes, mas não o suficiente para fazer com que a questão seja atacada diretamente pelo país. Como o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro cresceu 7,5% em 2010, pode-se ter a impressão de que são demandas relativas a bolsões de pobreza, autossolucionáveis com o crescimento da economia. Segundo estudo do próprio Neri, a melhoria na renda dos mais pobres vem diminuindo o fosso social e hoje a desigualdade já está em patamares idênticos aos de 50 anos atrás, graças à ampliação do acesso à educação. Isso não significa que as conhecidas lacunas da educação podem ser esquecidas. A ampliação do acesso foi capaz de produzir as transformações levantadas por Néri, mas apenas a qualidade oferecerá ao país a possibilidade de dar o próximo salto: a qualificação para a vida em uma sociedade que requer cada vez mais conhecimento. A educação, uma política pública de longo prazo, mais do que nunca requer urgência.

Complexidades
Seria equivocado dizer que o país nunca enfrentou a questão da pobreza como limitador do acesso à escola. Afinal, temos o maior programa de livros didáticos do mundo, que adquiriu, apenas em 2011, 135 milhões de obras de ensino fundamental. Do mesmo modo, a fome deixou de afetar muitas crianças e jovens a partir do momento em que elas se matriculam nas escolas, com programas de merenda já consolidados – às vezes com mais de uma refeição diária. Recentemente, o Brasil criou e exportou o programa Bolsa Família, uma cesta de benefícios que incorporou iniciativas anteriores (como o Bolsa-Escola). Contudo, tais iniciativas não se mostraram capazes de alavancar a aprendizagem, até porque são políticas gerais e não focadas nas dificuldades de aprendizagem apresentadas pelos alunos mais pobres. No máximo, dizem os especialistas, essa rede de suporte impede que o gap seja ainda mais profundo.

Para tornar mais igualitárias as oportunidades – um direito constitucional de todas as crianças e adolescentes – é preciso ir além. E aí começam os problemas. “É simplista dizer que a educação poderia resolver tudo. Este é um cenário complexo, que envolve muitos fatores, mas no qual certamente a escola tem um papel a cumprir”, avalia a pesquisadora Adriana Ramos, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Mas é preciso olhar de frente para essa realidade, e muitas vezes isso não é feito”, diz. Esta preocupação deve estar expressa mais claramente nos programas de melhoria da qualidade da escola, na opinião da pesquisadora mexicana Margarita Zorrilla, membro do Grupo de Especialistas da Organização dos Estados Iberoamericanos, que estudou as políticas adotadas em quase todos os países latino-americanos. “O propósito de reformar os sistemas educativos significa mudar a educação escolar para que seja de melhor qualidade e esteja orientada de maneira decisiva para a equidade na distribuição de oportunidades para aprender”, diz. Ninguém diz que essa é uma tarefa simples, tampouco que possa ser executada sozinha pela escola. “Mas a escola é o centro das mudanças”, diz Margarita.

Para o educador Vasco Moretto, trata-se de uma questão central da cidadania e para a cidadania. “Cada escola não tem outro caminho a não ser focar seu trabalho na educação para a cidadania, envolver a família e a comunidade, e compreender que as demandas são mesmo complexas”, diz. Em alguns casos, essa complexidade pode ser exemplificada em números extraídos dos questionários da Prova Brasil e do Pisa. No Pisa se verá, por exemplo, que 25% dos jovens de 15 anos das famílias de menor escolaridade não vivem com as suas mães. Na Prova Brasil, 10,5% das crianças do 5º ano do ensino fundamental de menor contexto econômico estão no mesmo caso. Mas há outros fatores, que são conhecidos, mas não entendidos a fundo na educação.

Um relatório do Unicef  publicado em abril evidenciou o quanto as crianças são afetadas pela violência. O texto sugere que 96% dos casos de violência física e 64% dos casos de abuso sexual contra crianças de até 6 anos são cometidos por familiares. Quando se fala dos adolescentes, o problema é igualmente grave, com 81 mil mortes violentas em um ano. O estudo conclui que as políticas públicas brasileiras voltadas para essa população são insuficientes. “É o grupo etário mais vulnerável a riscos como o desemprego e subemprego, a violência, a degradação ambiental e redução dos níveis de qualidade de vida”, diz o relatório. Some-se a esse quadro a falta de higiene, com muitos adultos dividindo o mesmo espaço físico de um único cômodo, em habitações de chão batido, sem acesso à água limpa. Nesse contexto social, segundo os dados do MEC, quase 60% das crianças não têm uma mesa para estudar ou fazer lições de casa. Separar questões como essas, por exemplo, do altíssimo absenteísmo verificado nas escolas é impossível.

Soluções
Mas o que é possível fazer? Para os especialistas, há três níveis de ação: o primeiro refere-se ao campo dos gestores dos sistemas públicos de ensino, em âmbito federal, estadual e municipal; o segundo é o da escola e o terceiro refere-se diretamente ao trabalho do professor. No primeiro caso, é preciso reconhecer a demanda e desenvolver políticas intersetoriais para o enfrentamento dos problemas educacionais ligados à pobreza.

O caso do programa Bolsa Família é um exemplo típico: a contrapartida para que as famílias recebam o auxílio é a frequência à escola.  É preciso que alunos de 6 a 15 anos comprovem frequência de 85% das aulas e os de 16 e 17, 75%, no mínimo. Não há nenhum objetivo acadêmico. Especialistas como Néri defendem que a contrapartida contemple ganhos educacionais efetivos – é o que ele chama de Bolsa Família 2.0. Com apoio da Fundação Getulio Vargas e da equipe de Néri, o município do Rio de Janeiro desenhou um programa de geração de renda semelhante, mas com estímulos de aprendizagem aos jovens, denominado Família Carioca. Os alunos que atingirem um aproveitamento de 80% nos exames bimestrais habilitam suas famílias a receber um valor extra de R$ 50,00 por aluno. O mesmo vale para aqueles que têm rendimento ainda insuficiente, mas apresentarem pelo menos 20% de melhora por bimestre. Para o pesquisador, os professores já têm incentivos salariais vinculados ao desempenho escolar e a premiação é importante estímulo para os alunos. O Ideb do Rio, que era de 4,5, em 2005, chegou a 5,1, em 2009.

Segundo ele, para que a pobreza não se perpetue em um círculo vicioso, é preciso investir em educação infantil, uma área para a qual apenas recentemente as políticas públicas despertaram. “A chave para a pobreza está acima de tudo na faixa etária de 0 a 5 anos”, acredita. Mas também há caminhos a serem trilhados nos ensinos fundamental e médio. Para Francisco Soares, a formação de turmas menores, a adoção de tempo integral, o acompanhamento extraclasse e as atividades de férias são algumas das políticas públicas que devem ser adotadas.  “Tudo o que for feito será ainda mais barato que as repetências sucessivas e abandonos que vão criar jovens que não têm como se integrar produtivamente na vida de nossa sociedade”, diz.

Âmbito federal
No Brasil, as redes de ensino público municipal e estadual funcionam com relativa autonomia. O MEC, como não gere redes (a não ser a das escolas técnicas federais), atua como indutor de políticas. No caso das escolas com maiores dificuldades, a principal ação do Ministério se concretiza no Plano de Ações Articuladas (PAR), que libera recursos para projetos apresentados por municípios e estados. O programa trabalha com 28 mil escolas, que têm de fazer diagnóstico sobre as razões que explicam baixo rendimento, e o que elas propõem para melhorar. Depois da aprovação, a escola recebe recurso em sua conta bancária para que execute ações. Contudo,  um dos problemas enfrentados é a precariedade dos projetos. No início do programa, 7 em 10 projetos eram recusados por inconsistência. Se há boa notícia, é que isso vem mudando. Hoje, apenas 1 é recusado. O MEC investiu R$ 500 milhões nos últimos dois anos.

Problema maior
Mas ainda há muito a ser feito, principalmente no sentido de transformar os recursos em políticas pedagógicas que de fato influam na aprendizagem dos alunos. Hoje, os esforços feitos pela escola são mais comuns naquelas que menos precisam, segundo dados dos questionários da Prova Brasil, sugerindo práticas que beiram o segregacionismo. Segundo os dados analisados por Farias, os programas de reforço escolar são 20% menos frequentes nas escolas de mais baixo estrato social do que nas demais instituições da rede pública. “É impressionante que isso aconteça, porque os dados permitem que os projetos sejam feitos mirando justamente as escolas com mais problemas”, diz o pesquisador.

Essa é a questão: não faltam informações, mas um enfrentamento direto da questão. Em 2009, o Ministério da Educação  e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) identificaram dez políticas que conseguiram reverter as limitações sociais e melhorar a aprendizagem. Algumas delas atendem diretamente à inclusão dos alunos de contexto social associado à pobreza. É o caso da atenção individual ao aluno, feita através do acompanhamento da família, de atividades complementares na escola e de ações intersetoriais (troca de informações entre a escola e outras áreas, como a saúde e as varas da infância e adolescência). Essas práticas atuam sobre um dos vetores das dificuldades dos alunos pobres: o baixo repertório cultural do meio onde vivem. “Se as crianças não têm acesso a ambiente letrado em casa, precisamos trazer pais de volta à escola e fazer com que tenham essa oportunidade”, diz Maria do Pilar, secretária de Educação Básica do MEC. Ao mesmo tempo, o acompanhamento do trabalho realizado pelas escolas deveria ser mais criterioso, no sentido de oferecer um suporte pedagógico mais eficaz e diminuir o desequilíbrio existente nas instituições. Os dados dos questionários mostram que nas escolas que atendem majoritariamente populações mais pobres apenas 16,8% dos docentes conseguiram desenvolver mais de 80% dos conteúdos previstos no ano – contra 44% das demais.

Para mudar esse quadro, é preciso agir diretamente na formação do professor, que precisa saber como lidar com uma realidade para a qual não foi preparado nos cursos de pedagogia. “Não adianta, a realidade é esta e precisamos agir”, diz Vasco Moretto. Hoje, as políticas de formação continuada ainda não respondem às demandas específicas dos educadores, e focam temas gerais, numa escola pública que é extremamente diversa. “Precisamos de uma pedagogia que realmente olhe para as crianças e as reconheça em seus contextos, pois elas não estão recebendo o que precisam”, diz Francisco Soares. “Os alunos da periferia precisam de uma pedagogia, os do campo precisam de outra e os das cidades pequenas também”, completa. Katia Smole, coordenadora-geral do Grupo Mathema, avalia que sem uma política de suporte mais completa é difícil esperar que o professor vá além do que faz hoje. “Acho que os educadores ainda fazem milagres. A diversidade é tamanha que a escola não tem fôlego para dar conta de tudo”, acredita.

Educar para a diversidade
Se o papel do Estado e da instituição escola é imprescindível, cabe ao professor, como na fábula de Esopo, pendurar o sino no pescoço do gato – ou seja, enfrentar diretamente o desafio de educar dentro da diversidade. Nesse quesito, também há muito a caminhar. Kátia aponta que, em um tempo que valoriza a proficiência em linguagens e matemática, o ensino de artes ficou particularmente empobrecido. “No entanto, está provado que o desenvolvimento intelectual da criança pode ser diferente quando as artes estão entre as linguagens utilizadas”, argumenta.

Segundo a coordenadora, a escola ainda padece de uma idealização das crianças. “Estamos em dois extremos: ou da falta absoluta ou da idealização total”, diz. Por isso, é preciso mudar esse ponto de vista. Em primeiro lugar, a escola espera que o aluno fracasse. A expectativa negativa dos professores sobre os alunos é alta em todos os contextos sociais da escola pública. Entre 84% e 89,2% dos professores acham que os problemas de aprendizagem decorrem do desinteresse e da falta de esforço do aluno, sendo que 80% os creditam ao ‘meio em que o aluno vive’. Essas crianças, que vêm de famílias com problemas acumulados, chegam à escola com a estima ainda mais pressionada, e tendem a ser mais frágeis diante da previsão de seu fracasso. Depois de sucessivas dificuldades, elas passam a acreditar que são incapazes.

Adriana Ramos, pesquisadora no campo da educação moral, acredita que o problema é mais embaixo. “O professor precisaria se incomodar mais com essa realidade”, diz. Para ela, falta “sensibilidade moral” ao docente, que não dá a devida atenção ao aluno que tem em frente de si. Em uma pesquisa recente, Adriana viu professores pedirem pesquisas na internet como tarefa em escolas sem computador. “Os alunos diziam não ter dinheiro para ir à lan house , mas isso não era problema deles”, lembra.

Outro exemplo é a questão da merenda. Muitos docentes reclamam que os alunos vêm à escola para comer. Não é fortuito. Segundo dados do IBGE, quase 12% das famílias ouvidas na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) disseram que normalmente a quantidade de alimentos ingerida é insuficiente. “Se eles vêm para comer, essa é uma razão a mais para recebê-los, e não a menos”, diz Adriana. Para ela, os docentes precisam receber suporte para ensinar face ao desafio, mas antes de tudo devem aceitá-lo. “Se eles reconhecerem essa missão, a profissão se torna ainda mais grandiosa”, argumenta.







o que é uma família pobre?
No Brasil, prevalecem os critérios adotados pelo IBGE – os últimos dados formulados definiram R$ 70,00 por adulto residente no domicílio (linha que limita a pobreza e a extrema pobreza). Nesta reportagem, em vez de se fixar em critérios de renda, Ernesto Faria utilizou, para o tratamento dos dados da Prova Brasil, critérios como números de banheiro por domicílio, quantidade de televisores, automóveis e outros itens de consumo, que permitiram dividir as escolas em quatro segmentos socioeconômicos (contexto mais baixo, contexto baixo, contexto alto e contexto mais alto), a partir dos quais foram feitas as comparações. No caso dos dados do Pisa, ele considerou a escolaridade dos pais – famílias de escolaridade mais baixa não completaram o primeiro ciclo do fundamental e as de escolaridade mais alta têm nível universitário.












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