O cinema como depositário da esperança de uma educação emancipadora
Publicado em 10/09/2011
O professor Antonio Candido, num ensaio clássico, afirma o caráter universal da fabulação, das criações de toque poético, ficcional ou dramático que dão origem à literatura. Para ele, a literatura é uma espécie de sonho acordado das civilizações, no qual a vida é recriada; os sonhos são vividos, o passado é revisitado. Por isso não é raro que memórias e ficções sobre a vida escolar nos apresentem descrições mais interessantes para a formação de professores que uma pletora de estudos empíricos, em geral incapazes de captar a concretude de uma experiência pessoal e social na instituição escolar.
No cinema – essa forma contemporânea de fabulação ficcional – a experiência escolar tem sido um tema recorrente. Por vezes de forma direta, como em
Sociedade dos poetas mortos ou Nenhum a menos
. Noutras, de forma secundária no roteiro, mas não menos marcante e decisiva na formação dos sujeitos. É o caso do filme
The wall
, com sua cena antológica na qual, ao som de Pink Floyd (We don’t need no education…), crianças caminhavam em direção a um moedor de carne. Mas há uma produção espanhola de 1999 que, embora tenha passado quase despercebida em nossos cinemas, merece a atenção de professores e formadores. Raras foram as ocasiões em que o ideal educacional republicano aparece de forma tão clara e tocante.
Em
A língua das mariposas
(
La lengua de las mariposas
, de José Luís Cuerda), dom Gregório é um professor prestes a se aposentar e encarna toda a esperança que republicanos – socialistas ou anarquistas – depositavam na educação como elemento de emancipação social na rica atmosfera pedagógica que sucedeu à proclamação da II República na Espanha. Moncho é um garoto de sete anos, sensível e curioso, mas preso ao convívio familiar em razão da fragilidade de sua saúde. O protagonista do filme não é um nem outro, mas a relação entre ambos no contexto da radicalização política que culminará com a Guerra Civil Espanhola.
Ao longo de um ano de convivência, Moncho irá descobrir o amor, o sexo, a morte, a traição. Numa cena que é a própria síntese desse processo, depois de perguntar sobre a existência do céu e do inferno, Moncho morde uma maçã e olha para o infinito como quem perde as certezas e a inocência. A atitude de dom Gregório nesse episódio é exemplar: pergunta-lhe o que diz sua mãe, católica, e seu pai, um republicano. Em seguida não se furta a apresentar sua visão. Mas não o faz como quem revela a verdade final e inconteste, pois sua ação é sempre um compromisso com a liberdade.
Não simplesmente com a liberdade de escolha individual de Moncho, mas com a liberdade como um atributo potencial da vida política de homens que tomam para si a responsabilidade conjunta pelo seu destino. Liberdade que se concretiza na libertação em relação à educação dogmática do catolicismo ibérico, na cena em que discute com o padre. Na libertação da herança semifeudal em relação aos senhores de terras e homens, como quando recusa a oferta do latifundiário que invade sua sala de aula. Enfim, na libertação em relação às amarras do passado obscurantista que dominava a Espanha e que acabará por triunfar novamente com o golpe de Estado do general Franco.
Na noite que precede o início da Guerra Civil Espanhola, Moncho chega ao fim do livro que dom Gregório lhe havia ofertado. Era
A ilha do tesouro
. O tesouro da liberdade política, que também chegara ao fim.
José Sérgio Fonseca de Carvalho
é doutor em filosofia da educação pela Feusp
jsfc@editorasegmento.com.br