Uma análise sobre gênero, diversidade sexual e família nos livros didáticos
Publicado em 10/09/2011
A idéia de família tem uma constância na escola, ambas são vistas como lugares importantes para o processo de socialização. E essa socialização não é neutra; transmite, produz e reproduz modelos de comportamento, sensibilidade e racionalidade próprios da cultura. Corpos masculinos e femininos são construções sociais e históricas, e as instituições sociais – família, escola etc. – atuam nesse processo educativo. Os conteúdos utilizados pela educação formal estão repletos de significados de gênero, denunciando, e muitas vezes justificando, desigualdades, ora por meio do preconceito, ora valendo-se do silêncio. O conceito de gênero pode permitir que percebamos o caráter sociológico da construção dos conteúdos veiculados pela educação escolar. Para tal, procuramos sair de explicações fundamentadas exclusivamente sobre as diferenças físicas e biológicas, afirmando a natureza social, histórica e política que a socialização de gênero inevitavelmente apresenta.
O uso da categoria gênero pode então ser visto como uma primeira maneira de dar significado às relações de poder. Pode ser entendido como um caminho para compreender as complexas conexões entre várias formas de interação humana, abrangendo outros aspectos da organização sócio-histórica, como os saberes produzidos sobre a sexualidade e sobre a noção de família, também esta carregada de sentidos que remetem às relações de gênero. É evidente seu peso na educação, nas imagens e conteúdos veiculados nos livros didáticos e nas expectativas de professoras e professores em relação a seu papel quanto ao desempenho escolar. Se a família se mostra ausente, negligente ou omissa, é acusada pela escola de ser a culpada pelo rendimento insatisfatório dos filhos.
No caso específico deste texto, aborda-se a introdução do conceito de família, em particular na produção dos livros didáticos. Este é o nosso objetivo: examinar mais detidamente de que maneira a família comparece ao livro didático e que funções esse processo pode cumprir.
A noção de família está bastante presente nos livros didáticos. Mas o que ressalta é a tensão entre a permanência de um modelo muito próximo do estereótipo de família "estruturada" veiculado pelas escolas e a indicação de mudanças em que emergem e realçam modalidades alternativas. Fortes referências patriarcais em descrições sobre história, cotidiano, divisão sexual do trabalho, cuidado infantil e outras convivem com modelos de famílias monoparentais, chefiadas por mulheres, lares adotivos, intergeracionais, multirraciais ou com homens exercendo o cuidado infantil.
Desempenhando o papel de manutenção da ordem social estabelecida e colaborando para erigir a família como uma das âncoras que sustentam o statu quo das relações de gênero, foi constatada, no conjunto, uma potente mensagem: a permanência de um determinado modelo de família nuclear, branca e de classe média.
A família estruturada
Trata-se, na verdade, da família assim chamada de "estruturada", isto é, daquela idealizada como nuclear – pai, mãe e filho(s) -, de classe média, na qual os genitores são portadores de boa formação e totalmente dedicados à obtenção do mérito escolar de seus filhos. Essa organização familiar passa a ser a norma a partir da qual se erige um modelo tido como universal e inalterável. Recusam-se, assim, os arranjos que se afastem da norma, com base em uma visão que opõe a família "estruturada" àquela "desestruturada". Quem descumpre a norma não funciona, "não dá certo", e a diferença é então utilizada para construir uma hierarquia que distingue e valora alguns em detrimento de outros.
A maior parte das imagens remete à tríade pai, mãe e filho(s) e à organização heterossexual. Na intenção de tornar vigentes os preceitos e comportamentos considerados apropriados a cada sexo, bem como de converter as crianças em homens e mulheres "genuínos" ou "de verdade", parte-se do pressuposto de que masculinidades e feminilidades se constroem não só distintamente, mas também contrapondo-se mutuamente: ser uma coisa implica necessariamente não ser a outra.
Um exemplo bastante significativo é trazido por um livro de língua portuguesa destinado à 4ª série do ensino fundamental (
Porta aberta: língua portuguesa
, de Carpaneda e Bragança, FTD), o qual apresenta um elenco quase completo da divisão sexual do trabalho que ainda impera na elaboração dos livros didáticos. Entre as ações ligadas à criação da prole, as que dizem respeito à coragem são do genitor, ao passo que à genitora se reserva o medo e a insegurança: "Toda mãe tem o direito de se recusar a ver
A hora do pesadelo
". O feminino se vincula ao superficial, ao detalhe, à mera aparência: "Toda mãe tem o direito de considerar Freddy Krueger um inimigo e exigir que procure uma manicure"; por sua vez, o masculino irrompe como aquele que abarca o mundo ao redor: "Todo pai tem o direito de assistir ao noticiário na TV". Por último, evidencia-se a atribuição mecânica das tarefas domésticas às mulheres: "Toda mãe tem o direito de se recusar a juntar as roupas que os filhos atiram ao chão". Essa frase, que numa leitura condescendente poderia até ser interpretada como sinal de mudança, já que implica uma possível rejeição ao paradigma tradicional, não deixa de reforçar a preocupação com a ordem e a limpeza da casa como fundamentalmente atrelada às mulheres.
Em outros momentos, como em um livro de história destinado à 2a série do ensino fundamental, a imagem da mãe responsável pelo cuidado se soma à concepção de que mulher é sinônimo de instabilidade emocional: às vezes está alegre e brinca, e em outros momentos está cansada, irritada ou "brigou com o pai", como em
Porta aberta: história
(autoria de M. Lima, FTD).
Tais significados integram o conteúdo curricular de uma educação diferenciada para meninos e meninas, garotos e garotas, consonantes com os binômios força/fraqueza, coragem/temor, raiva/choro etc. Qualquer "desvio de conduta" corre o risco de ser evidenciado e duramente criticado. Prescrevem-se rígidos modelos de gênero que inspiram representações e práticas sociais polares, desiguais e excludentes. Todavia, ainda que o peso da permanência seja marcante, há um grande número de alterações na maneira de conceber e apresentar o tema da família sob a ótica da diversidade sexual e das relações de gênero.
Sobre mudanças
Em diversas situações em que as relações familiares são discutidas sob a ótica da diversidade, é grande o potencial para surgirem arranjos inusitados, como os de "famílias mosaico", com diferentes composições: pai, padrasto, mãe, madrasta, filho, irmão, meio-irmã, como em
Interagindo com a história
, de Sourient Rudek e Camargo (Editora do Brasil).
Um exercício proposto por um livro de história indicado para a 1ª série do ensino fundamental solicita: "Desenhe numa folha as pessoas com as quais você convive". Na seqüência, chama-se a atenção e valoriza-se o que não é igual: "As famílias vivem e se organizam de maneiras diferentes. Veja as fotos. Converse com a turma sobre diferenças e semelhanças", como aparece em
Travessia: história
, de Simon e Fonseca (Dimensão).
Outra tendência de mudança diz respeito a um recorte multicultural e temporal das relações de parentesco e dos costumes praticados em seu seio. Ao apontar para novas configurações, o livro didático de história para a 2ª série do ensino fundamental solicita do aluno as seguintes informações: "Com quem você mora?", "Seus pais vivem na mesma casa ou em casas separadas?" e "Todos os filhos de seus pais são de um único casamento ou de casamentos diferentes?, como aparece no já citado
Porta aberta: história
.
Família e casamento deixam de estar intimamente associados, como em um livro de história dedicado à 4ª série. Ao tratar da época da colonização, é dito que "muitos se casavam. Outros formavam família sem se casar". Abordando a situação de um menino que morava com outras crianças num orfanato e, por isso, não conheceu pai ou mãe, um livro didático voltado para a 2ª série do ensino fundamental sugere que é como se pudesse provar, no contato com diversas outras pessoas adultas, sorvete de todos os sabores (o mesmo
Porta aberta: história
, de autoria de Lima).
Rompe-se, assim, com a noção singular e universal de família. As novas maneiras de ver a instituição familiar buscam levar as crianças a refletir sobre mudanças ocorridas nos papéis e tarefas considerados masculinos e femininos. Menciona-se a existência de mulheres desempenhando outras funções, inclusive citando exemplos, como o da compositora Chiquinha Gonzaga, que alcançou o reconhecimento popular (
História, 1ª série
, vários autores, Projeto Pitanguá e Editora Moderna).
Assim, algumas das novas dimensões sobre a presença das relações de gênero na parentalidade e conjugalidade já se encontram difundidas nos livros didáticos. Contudo, apesar das interessantes mudanças, que acenam para a existência de outros arranjos, a ausência da diversidade sexual e de famílias homoafetivas e homoparentais em imagens ou textos ainda constitui um campo de silenciamento que pode legitimar a homofobia.
O ápice no destaque à diversidade aparece em uma das ilustrações de um livro de história para a 1ª série. Entre crianças abandonadas em praças e ruas e um casal sem filhos, está a foto de um homem adulto que mora sozinho e está passando roupa (no já citado livro de Simon e Fonseca). De todas as imagens observadas no material colhido e analisado, essa é a única que dá margem a falar sobre pessoas que moram sós, possibilitando expressar um outro estilo de vida, diferente daquele da maioria dos adultos, que são casados e vivem "em família". E esse é o limite máximo da diversidade tratada nos livros didáticos, quando se abordam os tipos de família e sua construção histórica, social e política. Nenhuma alusão se faz à possível variação da orientação sexual. Perde-se, assim, uma chance de falar do segmento GLBT.
Nenhum livro oferece ao educador (a) mais aberto(a) e atento(a) a possibilidade de propor o aporte necessário ao maior adensamento do tema de uma família homoafetiva, nem mesmo argumentos que favoreçam a reflexão sobre o assunto. A esse respeito, pode-se questionar: até que ponto se trata apenas de tolerar, saber que uma outra coisa existe e até se compadecer dela, sem, porém, enxergar ou reivindicar para ela direitos efetivos iguais aos dos demais?
Não é possível concluir que as imagens de homens sozinhos – com bebê no colo, contando histórias para duas crianças, no parque com duas meninas pequenas, passando roupa em casa – ou de uma mulher sozinha com uma garotinha acenem necessariamente para a possibilidade de uma família homossexual com filhos (as).
Trata-se de um eloqüente silêncio: não há a menor condição de um aluno ou aluna se identificar com um (a) homossexual quando se trata das famílias apresentadas nos livros didáticos examinados. Essa realidade é posta de fora do universo tido como "comum" aos seres humanos, o que pode abrir espaço para a permanência da homossexualidade como algo bizarro, estranho, disparatado, marginal ou excêntrico.
Cláudia Vianna
é professora nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Educação da USP, pesquisadora e líder do grupo de Estudos de Gênero, Educação e Cultura Sexual (EdGES), juntamente com Marília Carvalho, e autora de Os nós do nó: crise e perspectivas da ação coletiva docente em São Paulo (Xamã, 1999), entre outros livros e artigos
Lula Ramires
é mestre em Educação pela Faculdade de Educação da USP e coordenador-geral do Corsa – Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor, entidade de defesa da cidadania GLBT
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