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Entrevistas

O poder positivo

Professora da UFMG diferencia a violência externa da indisciplina decorrente da busca dos alunos por sua identidade. E defende o diálogo para o exercício da autoridade no ambiente escolar

Publicado em 10/09/2011

por Rubem Barros

Especialista na obra do filósofo francês Michel Foucault, sobre a qual publicou
Poder, normalização e violência

(Autêntica, 2008), a professora Izabel Friche Passos, da Universidade Federal de Minas Gerais, defende que é preciso separar a questão da violência no âmbito da educação em duas dimensões. Uma delas é inerente às relações entre educadores e estudantes; outra é oriunda de problemas sociais externos à escola e nela se manifestam.

Avalia, ainda, que é possível um exercício do poder de forma menos controladora e mais construída em função dos interesses diversos que agem na escola. E recrimina a adoção do toque de recolher como forma de proteger os jovens. Leia, a seguir, a entrevista.


As escolas particulares fazem dos aparatos de segurança um diferencial de marketing. Agora, a rede pública paulista lançou um pacote que prevê, entre outras medidas, a instalação de 11 mil câmeras em escolas. A ideia do panóptico de Bentham está tomando o lugar disciplinar dos educadores?


Parece… Mas teríamos de ver a questão da violência nas escolas de duas maneiras, porque a questão talvez seja mais complexa. A primeira é do ponto de vista do interior da escola, as questões que aparecem para os educadores no cotidiano no interior da instituição educacional. Não é uma coisa nova. Esses confrontos que acontecem entre professores e alunos têm adquirido uma dimensão maior, mais evidente, mas é uma questão que está posta pelo próprio discurso da instituição, que é uma instituição disciplinar, normalizadora. Nesse sentido, o panóptico aparece como modelo idealizado de disciplina. Não que tivesse sido realizado por completo, como Bentham pensou para as prisões, para favorecer o olhar do vigia, de quem está ali controlando os prisioneiros. É uma estrutura circular, uma torre colocada no centro da prisão, em que quem está vigiando tem a visão de todas as celas, colocadas ao redor desse olho, continuamente acionado e fiscalizando o que se passa em todo o espaço prisional. Por isso é considerado um modelo de fiscalização e controle quase absoluto.


Sugerimos o paralelo porque, no panóptico, quem controla não está sendo visto e quem é controlado é visto o tempo todo.


Exatamente. Quem está sendo controlado não sabe se em algum momento não está sendo vigiado. É censurado continuamente. A tentativa de estar a par do controle é infrutífera para esse prisioneiro. É o modelo da disciplina absoluta, e a instituição escolar é disciplinar, conforme a teorização de Foucault sobre as instituições da modernidade. É o momento em que esse tipo de instituição prolifera: além da escola, a família torna-se cada vez mais disciplinar; o exército, configurado como uma instituição do Estado, armada; a prisão etc. Todas elas têm como base inicial o modelo dos conventos, das instituições religiosas. Por quê? O que se pretende das instituições sociais na modernidade? Normalizar os indivíduos, produzir indivíduos mais conformes às normas e aos valores sociais da sociedade. Essas instituições têm um papel fundamental de socialização e de normalização. Dada essa condição de instituição civilizadora da escola, vinculada à ordem social, os conflitos sociais se manifestam dentro dela – o preconceito de classe, de raça, as desigualdades sociais. As instituições disciplinares implicam uma hierarquização de poder e de saber, e os alunos nessa situação são submetidos ao poder da escola.


E qual o segundo ponto?


A escola também deve ser pensada como alvo de uma violência externa que a tem atingido de maneira exacerbada, num crescente que acompanha a violência urbana e social. Daí, talvez, a justificativa desse uso excessivo de câmeras, para tentar controlar a violência que tem invadido as escolas. É preciso diferenciar essa violência da relação de poder de normalização. A violência é uma coisa da ordem da destruição, do massacre, do desrespeito absoluto ao outro. Nesse caso, as escolas têm sido vítimas de uma violência proveniente do uso de drogas, do tráfico de armas, do pouco valor dado à vida humana nesse contexto. Situações e atos absurdos, com índices às vezes mais altos que aqueles de países em guerra.


Mas não é inerente ao exercício do poder no âmbito da escola que haja um sentido positivo, não restrito ao controle, que contemple o diálogo?


Quando falo de relações de poder e do papel civilizatório da instituição escolar, refiro-me exatamente a pensar o poder de uma outra maneira, não apenas como controle e subjugação, mas algo em que se baseiam todas as relações sociais. E que é positivo, porque não se produz nada se não houver certos limites, se não houver normas e regras. Nessa questão de se formar um cidadão está implícito um jogo de forças. O poder que é só negativo, que só controla, é pouco eficaz porque pressupõe um poder absoluto por parte de quem está submetendo o outro. E nas sociedades que se reinventaram na democracia, a partir da sociedade grega, o valor da liberdade, da igualdade entre os indivíduos é um valor básico. E é exatamente por isso que o poder disciplinar é o poder típico da sociedade moderna, pois pressupõe indivíduos livres e uma adesão desses indivíduos às normas. Não é uma questão de violência, de força bruta, como nos regimes absolutistas, totalitários, que são paradoxos da história, porque o poder disciplinar traz nele também a potência da deformação de seu exercício.


De que forma a senhora ilustraria o exercício desse poder positivo?


O filme Entre os muros da escola – que deveria ser visto por professores, pais e estudantes -, por exemplo, trata de uma questão do cotidiano que é o confronto entre professores e alunos. Aqueles adolescentes estão vivendo uma fase em que a agressividade é fundamental. O tempo todo eles confrontam a coerência do professor, os valores que tenta passar, reproduzir para os alunos. É uma forma de resistência salutar, pois é formadora. Não se trata de mera rebeldia, os estudantes estão tentando encontrar os seus referenciais morais e éticos para vida. Estão num momento de passagem para a idade adulta, e fazem isso por meio da contestação, de um teste dos valores que os adultos querem lhes impor. E há uma ética entre eles. Quando um aluno briga com o outro, eles se xingam. Mas na hora que aquele com quem ele briga é desafiado pelo professor, eles se aliam. É a ética do companheirismo, da camaradagem, em meio a um conflito geracional inevitável.


Mas no filme o universo do saber é posto em questão pelos alunos, que não veem utilidade na linguagem culta, tomando-a como um mero artifício de poder. A escola perdeu a capacidade de produzir discursos formadores de saber e indutores do prazer na relação com o conhecimento?


Será que algum dia ela teve esse poder dessa maneira? Desconfio de avaliações que dizem que o que estamos vivendo é consequência da falência das instituições. Segundo esse discurso, a escola estaria falida como instituição formadora, a família como referência moral. Será que a escola ou qualquer outra instituição consegue realizar de maneira tão harmônica os princípios a que se propõe? Porque a sociedade é cheia de conflitos, contradições e lutas. Não vivemos numa sociedade harmônica. A escola antiga era mais rígida e mais presa a esse modelo disciplinar mais tradicional. A partir dos anos 60,  vivemos uma transformação das instituições, que tem um lado positivo importante, de crítica a essa estrutura hierárquica rígida, em que o saber está de um lado, e as faltas estão de outro. Esse filme é bonito porque mostra o esforço dos professores de uma escola da periferia de Paris, cuja maioria dos alunos é de filhos de imigrantes, pessoas pobres sem o mesmo acesso à sociedade francesa, para compreender esses meninos, dialogar com eles.


Escola e família tinham modelos de autoridade que foram superados. Mas depois disso não se chegou a novos modelos que conseguissem legitimar-se.


A autoridade não está assegurada a priori por regimentos, por normatização, por um diploma ou por um cargo de autoridade. As famílias têm tido dificuldade de exercer essa autoridade sobre os jovens e crianças porque, para construí-la, é preciso ser um sujeito consistente, autônomo, ciente das próprias limitações. Os pais e famílias das classes mais pobres estão em condições de sobrevivência terríveis, que impedem qualquer forma de parar e pensar nos cuidados de seus filhos. E as famílias de classe média e média alta têm abandonado esse trabalho de construir sujeitos autônomos. Então, existe um problema que está nas margens mais elementares do tecido social. A autoridade é algo que se constrói nas relações, que não existe a priori, não existe modelo. É claro que antes as sociedades eram mais estáveis em termos de conflito social, como por exemplo o Brasil dos anos 50. Mas a custa de quê? De uma exclusão enorme de jovens e crianças.


Mas não lhe parece que os caminhos para essa construção não estão sendo encontrados?

O caminho não pode vir de uma política centralizada, imposta. Não conheço o programa que está sendo implantado no Estado de São Paulo, não li o manual. Parece uma tentativa nesse sentido, de achar estratégias que ajudem a construir esse sistema de autoridade para minimizar essa violência exacerbada.


Pela via da norma universal…


O problema é que essas políticas costumam ser planejadas em gabinetes, por especialistas. Fazem pesquisas que subsidiam as estratégias, mas existe pouca articulação com as bases, com quem terá de implementar a política e vive os problemas da violência em seu trabalho. Talvez uma das formas de construir melhor essas ações fosse permitir que as escolas e as comunidades pensem essas estratégias. Tudo bem haver cartilhas e manuais gerais que indiquem como agir em algumas situações ou que tragam alguns princípios e valores, mas só isso não funciona. As pessoas precisam estar realmente engajadas em um projeto. Uma das formas é o Estado disponibilizar recursos, estrutura, material para divulgação, ou seja, fornecer os meios, para que as comunidades locais construam os seus modos de atuação, tentando valorizar os recursos que têm. Quem vive na comunidade é que sabe por onde passa a violência em potencial. Mas não se trata de crítica ao programa de São Paulo, que não conheço.


Muitas cidades estão adotando o toque de recolher, tendo como justificativa a proteção de crianças e adolescentes. Como a senhora vê essa medida?


É impressionante como quando as coisas fogem ao controle se apela à medida repressiva. Temos de enfrentar a questão da violência, mas, quando a violência atinge de uma forma muito próxima, as pessoas normalmente pensam numa revanche. Ou seja, a resposta violenta contra a violência, como a pena de morte. O toque de recolher é uma espécie de policiamento da vida, da família, da população em geral. Caímos em outro conceito que Foucault desenvolveu que é o do biopoder, tipicamente uma estratégia de controle da vida urbana, da população. Tendo a ser contra esse tipo de medida. Primeiro porque não adianta nada. Não é botando hora para o adolescente estar em casa e aumentando o policiamento, ou levando para o Conselho Tutelar que se vai resolver a situação. Tornar o Conselho Tutelar cada vez mais policialesco não vai nos ajudar. Quem tem responsabilidade sobre as crianças e os jovens são os pais, isso é da nossa ordem social. Isso é que deve ser reforçado, e não um artifício como esse. Se o jovem está na rua se drogando, não é o toque de recolher que vai evitar que isso aconteça. Sou contra porque acho que atinge a liberdade de ir e vir de todo cidadão. Já existem leis e normatizações suficientes, não é preciso apelar para uma prática policialesca desse tipo. 

Autor

Rubem Barros


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