NOTÍCIA
Historiadora da educação investe em pesquisas sobre período- chave dos ensinos paulista e nacional e reclama maior intervenção de intelectuais nos debates relativos à escola pública
Publicado em 10/09/2011
A pesquisadora Ana Clara Bortoleto Nery faz parte de um grupo de pesquisadores que têm voltado seus trabalhos a uma espécie de arqueologia da educação brasileira, investigando os seus vestígios materiais e as memórias de seus protagonistas. Em seu caso, pesquisou as publicações pedagógicas e o embate entre correntes de educadores no Estado de São Paulo, nos anos 20, época em que a educação adquire importância para se pensar o país.
Em sua tese de doutorado, que resultou no livro A Sociedade de Educação de São Paulo: embates no campo educacional paulista – (1922-1931), publicado pela Unesp, onde leciona, faz uma análise das publicações e meios de atuação dos grupos que lutavam pela primazia do discurso pedagógico. Em sua pesquisa mais recente, que correspondeu à sua livre-docência, analisa a formação de professores na segunda década do século passado.
Ao comparar os debates daquela época com os de hoje, defende que os pesquisadores do campo pedagógico, na medida em que foram se especializando, afastaram-se progressivamente da escola. E que a universidade está distante das instâncias definidoras das políticas públicas. Leia, a seguir, a entrevista ao editor Rubem Barros.
Sua tese levou dez anos para chegar ao livro. O que mudou nesse período em relação à percepção da história da educação materializada nas publicações pedagógicas?
Quando fiz a tese, eram poucos os trabalhos em história da educação que usavam as novas fontes de pesquisa. No meu caso, trabalhei com periódicos educacionais. Naquele momento, aconteciam os primeiros movimentos para se pensar uma nova forma de abordar a história da educação, pouco utilizados até então. Quando eram, não usavam a perspectiva com que trabalho na tese. Depois desse trabalho, continuei a pesquisar periódicos educacionais, sobretudo publicações de professores. Minha preocupação tem sido a de saber como foi a formação docente, como era a escola, e como essas coisas foram pensadas e realizadas. O que vemos dos estudos mais recentes é que eles, cada vez mais, se aproximam da escola, não só de como ela foi pensada, mas como ela se concretizou de fato.
Sua livre-docência foi sobre Oscar Thompson, outro dos pioneiros paulistas, e a formação docente no começo do século passado. O que se queria do professor então?
No começo do século 20, no Estado de São Paulo – quando as realidades eram bem distintas em relação a outros estados, em função da autonomia – havia uma forte discussão sobre o que era necessário para formar professores. É uma questão ainda bastante atual. Em São Paulo, na Escola Normal, havia uma forte ideia de que bastava ensinar os conteúdos, aquilo que o próprio docente iria ensinar. E que através de práticas pedagógicas ele aprenderia a ser professor. Ou seja, de que se aprende a ser professor sendo professor. Essa formação era consolidada na prática diária. Hoje, temos um volume de conhecimentos pedagógicos bastante extenso, mas não sabemos muito bem o que fazer com ele. Nos perguntamos, com tudo isso que se sabe sobre o ensinar e o aprender, o que é mais relevante na formação docente.
Sua pesquisa mostra que nos anos 1920 havia uma tensão entre uma visão que privilegiava uma orientação filosófica do trabalho pedagógico e outra mais voltada a modelos práticos. O que havia de particular no debate de então?
Havia um embate entre as perspectivas da pedagogia moderna e da Escola Nova. Mas não era só isso. Havia grupos distintos debatendo. Quem eram eles? Havia uma tradição da Escola Normal da capital (posteriormente Escola Normal Caetano de Campos), de um grupo que começou a atuar pouco antes da Proclamação da República e marcava o espaço no campo educacional. A figura central era o Oscar Thompson. Eles tinham participação efetiva nas decisões da escola primária paulista e na formação de professores, publicavam muitas coisas sobre pedagogia – periódicos educacionais, livros, apesar de o mercado editorial ainda ser incipiente. No início da década de 1920, surge um outro grupo, mais especializado, com outra formação. São médicos, advogados, engenheiros que vêm para discutir o que era necessário para a instrução pública paulista naquele momento. Começa um debate entre eles e algumas figuras se destacam, como Fernando de Azevedo e Lourenço Filho, ambos desse segundo grupo, que irá se afirmar como uma referência na área. Passam a ocupar aquilo que chamo de hierarquia do campo educacional, e a dizer que aqueles que estão mais na prática, seja na escola primária ou normal, são defensores de algo já ultrapassado pelo novo, representado pela Escola Nova.
Seu trabalho analisa os debates no campo pedagógico em três frentes: publicações especializadas, na Conferência Nacional de Educação de 1929 e na grande imprensa. As estratégias foram adaptadas a cada uma dessas frentes?
Apesar de serem três foros distintos, existe uma linha de raciocínio ali. Mas é perceptível que em cada um desses lugares a discussão se dá em níveis diferentes, para que se possa convencer quem os lê ou ouve. A questão do interlocutor é essencial, isso é bem perceptível nos discursos que se constroem. O mesmo ponto ganha um discurso específico em cada foro.
Poderia dar um exemplo?
Se pegarmos a Conferência Nacional de Educação, os discursos são mais de natureza teórica. Mas quando analiso o que está por trás da conferência, mostro que há ali uma questão política. Quem deve realizá-la? O embate naquele momento se referia a quem tinha mais autoridade pedagógica para organizar um evento dessa natureza. Os organizadores do Rio diziam que era o governo de seu Estado. Já os membros da Sociedade Paulista de Educação de São Paulo diziam que havia educadores especializados aqui, com melhores condições de organizar o evento, o que era negado pelo pessoal do Rio.
E nos outros foros?
Na grande imprensa, houve um debate entre Renato Jardim, da Sociedade de Educação de São Paulo, e Sud Mennucci, do outro grupo. O que está mais evidente ali é quem de fato se preocupa com a escola pública. Tanto que o próprio Sud Mennucci depois publica um livro, chamado A escola paulista, com o que saiu na grande imprensa. O interessante é que ele publica o material em ordem cronológica inversa à dos textos que saíram na imprensa, dando a sensação de que teve razão nos debates, o que não é comprovado pela leitura dos jornais.
Hoje, o debate educacional realizado na grande imprensa parece ter muito mais ecos que no passado. De que forma isso influencia a mobilização política para o uso dos meios de comunicação?
Usamos muito pouco os meios de comunicação para debate. A participação da universidade ainda é muito pequena nos grandes debates da educação. Os livros que publicamos, acadêmicos, têm circulação restrita. Falo do ponto de vista de alguém que atua no interior do Estado, onde se percebe a existência de poucas discussões mais teóricas e de entendimento do que é a formação de professores ou um curso de pedagogia, as necessidades de um professor da escola básica. Quando se pensa, por exemplo, na aproximação da família com a escola, os professores (falo a partir da minha experiência docente em sua formação) pouco sabem a respeito do trabalho deles. Eles não têm o conhecimento de que a pedagogia é um campo de especialização, atuam mais em cima dos conteúdos a serem ensinados do que de um saber pedagógico que oriente a profissão. Se conseguíssemos de fato um espaço maior nos meios de comunicação para falar sobre educação, para formar professores de uma maneira mais informal, conseguiríamos mais resultados.
E por que esse espaço não é conquistado?
Em Marília, onde dou aula na Unesp, a cada semana há uma coluna escrita por um professor da universidade, mas pouco se fala sobre educação nesses raros espaços que temos. Cada um fala sobre aquilo que trabalha de fato, sobre o saber da docência. Não se fala ou debate sobre o papel da escola na sociedade, que precisa ser mais debatido. É por isso que quando se fala na aproximação entre família e escola não se sabe o que fazer com os pais, se devem mesmo vir ou não. Projetos que poderiam ser interessantes, como o Escola da Família, acabam sendo mais de atendimento de uma demanda social do que propriamente de aproximação de pais e comunidade com a escola. Por outro lado, a universidade se isola muito, espera ser convidada para um debate, não vai a ele ou o provoca.
Muitos membros da Sociedade Paulista de Educação eram profissionais liberais preocupados com os rumos da nação. Essa ação, nos dias atuais, foi substituída pela de empresários e economistas?
Quem mais discute de fato a educação são os representantes da iniciativa privada e, sobretudo, os políticos, que podem estar mais próximos da iniciativa privada que da educação pública. Se pensarmos em termos da Sociedade de Educação, qual é o grande fórum da educação nacional hoje? Qual instituição ou associação poderia ser comparada a ela? Hoje, temos mais associações de classe. Nos anos 90, quando da elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, havia um fórum de discussão, em defesa da escola pública. Na área de pesquisa educacional, temos a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), que discute mais as questões teóricas do que ações políticas, apesar de ter ações dessa ordem. Mas grandes fóruns ou instituições, nós não temos.
Estamos às vésperas da Conferência Nacional de Educação 2010. Há paralelos possíveis entre o formato e os objetivos daquela conferência e desta?
São de naturezas totalmente distintas. A ideia da Conferência Nacional de Educação hoje é mais a elaboração de uma política nacional da educação, por iniciativa do Ministério da Educação, do governo federal. Naquele momento, a Conferência foi elaborada por um grupo ligado à Associação Brasileira de Educação, de profissionais liberais e profissionais da educação que estavam preocupados não com uma política nacional de educação, mas em uma ideia do que é educação. E, portanto, com quais seriam os rumos da escola pública, não do ponto de vista das políticas, mas da realização da educação nacional.
Mas essas dimensões não são convergentes, ou seja, as políticas não embutem uma ideia de educação?
Sim, mas naquele momento a discussão era mais teórica. A preocupação central das primeiras conferências era a ideia de nação, no momento em que havia grandes movimentos migratórios. Havia uma preocupação de construção da identidade nacional através da educação, coisa que não temos mais no centro do debate hoje. Se, por um lado, na década de 20 a Conferência podia dar subsídio para uma política nacional da educação, ainda não havia então um Ministério da Educação, órgão de convergência de ideias. Era um momento de afirmação da sociedade civil para dizer que existiam pessoas preocupadas com os rumos da educação. Hoje, temos o governo federal preocupado com a elaboração de uma política nacional. Mas não vemos a participação da sociedade civil, principalmente daquela mais especializada.
Mas as conferências preparatórias reuniram um milhão de pessoas…
Com pouca participação das universidades. Parece que a universidade está se afastando cada vez mais do que é a escola. O volume de trabalhos de extensão universitária, que é a possibilidade de atendimento a uma demanda da sociedade, é pequeno na área de ciências humanas. Há uma ênfase no ensino e na pesquisa. O que aconteceu? Desde a época da Sociedade de Educação, cada vez mais a educação ficou na mão de especialistas. E cada vez mais eles se afastaram e se afastam do que é essencial, a escola.