Oficialmente, fala-se apenas português no Brasil. Mas há muito mais do que isso nas salas de aula das aldeias indígenas
Publicado em 10/09/2011
Aula entre tribo guarani no Pico do Jaraguá, em São Paulo: professores indígenas ensinando as novas gerações |
O cineasta alemão Werner Herzog conta ter conhecido um aborígene australiano de 80 anos que era o último falante de sua língua. Como não tinha com quem conversar, as pessoas pensavam que ele era mudo.
O pai de Jacira – ou Cunhã Embyre Tataendydju, uma tupi-guarani que se declara tupinambá e vive numa aldeia no sopé da Serra do Mar, município de Peruíbe, litoral sul de São Paulo – pode muito bem ter imaginado essa possibilidade quando resolveu escrever, a mão, um dicionário em sua língua-mãe para deixá-lo aos filhos. O pai de Jacira morreu há um ano, mas o dicionário está com ela, cuidadosamente preservado, assim como uma extensa memória contada dia após dia por um homem consciente do risco de extinção de sua cultura.
"Meu pai nos passou desde cedo a idéia de que essa é a nossa briga: sermos reconhecidos como tupinambás. Ele falava o tupi antigo, o tupi moderno e o guarani e dizia que havia muitas diferenças entre essas línguas. Ele preparou meu irmão mais velho para ficar no lugar dele, para passar a ele tudo o que sabia, mas meu irmão se foi primeiro do que meu pai, então ele teve de deixar para mim pelo menos uma parte da preparação", conta Jacira.
Num agradável início de tarde de sol em agosto, num dos espaços abertos da Universidade de São Paulo (USP), Jacira estava de botas até o joelho, jeans e camiseta vermelha. Bonita e vistosa, 23 anos, ela se enquadraria facilmente no figurino uspiano, a não ser por alguns detalhes: amamentava em público a filha de nove meses chamada Guerreira Flor do Amanhecer, na tradução do nome em tupinambá, ao lado da outra filha de 4 anos, Guerreira da Luz Clara, e exibia colares e brincos de penas coloridas que ela mesma fez – a síntese perfeita do moderno e do tradicional que se percebe nos jovens indígenas brasileiros.
O outro nome de Jacira é "A Última Luz". Em agosto, ela saiu de sua aldeia em Peruíbe para mais uma semana de aula na capital. Em abril do ano que vem, receberá seu diploma no curso de formação superior de professor indígena, resultado de um convênio entre a Faculdade de Educação da USP e a Secretaria Estadual de Educação, que põe em prática os artigos 210, 215, 231 e 232 da Constituição de 1988, que prevêem educação diferenciada para os povos indígenas. Como é costume no Brasil, a legislação demorou a pegar. Na verdade, ainda não pegou de todo.
A Constituição, que está para completar 20 anos de vigência, estabeleceu como competência do MEC "a coordenação das ações de educação escolar indígena no país, por meio da definição de diretrizes curriculares para a oferta de educação escolar aos povos indígenas, assistência técnico-financeira aos sistemas de ensino para oferta de programas de formação de professores indígenas e de publicação de materiais didáticos diferenciados e elaboração de programas específicos para atendimento das necessidades das escolas indígenas, visando à melhoria nas condições de ensino nas aldeias".
Na prática, a maior parte disso ainda está no papel. Mas Jacira e os colegas das cinco etnias (guarani, kaigang, krenak, terena e tupi-guarani) que estavam na USP representam o que de melhor se faz hoje para evitar que se percam os quase 200 idiomas e as diferentes culturas indígenas que sobrevivem no Brasil, país que, oficialmente, tem uma língua única. Esses idiomas estão distribuídos em 41 famílias, dois troncos lingüísticos e dez línguas isoladas. Contudo, em algumas aldeias, o português já se tornou a única forma de expressão.
Alguns dos idiomas que sobrevivem devem confirmar a previsão de Werner Herzog de que das cerca de 6 mil línguas vivas faladas hoje restarão menos de 10% até o fim do século. O motivo é simples: muitos dos falantes desses idiomas são invisíveis. Eles estão aí, mas quem os vê?
Os brasileiros invisíveis
Em 1500, antes da chegada dos conquistadores europeus, os indígenas brasileiros somavam 6 milhões de indivíduos e o país era deles. Foram aniquilados em massa e, na primeira metade do século 20, não passavam de 200 mil – menos de 4% de sobreviventes. Aos poucos, graças a políticas públicas de exceção, estimuladas por movimentos sociais de minoria, registrou-se um aumento populacional constante. Hoje, as estatísticas mais respeitáveis estimam que a população indígena no Brasil compõe-se de 400 mil a 500 mil indivíduos, mas não há números exatos. De acordo com o censo populacional do IBGE de 2000, existiriam 734.131 índios brasileiros, mas esse total é questionado, pois foi obtido por informações sobre cor de pele, e não por meio da auto-identificação étnica.
Dados mais objetivos indicam que hoje há mais de 2.400 escolas funcionando em terras indígenas, para aproximadamente 175 mil estudantes. Trabalham nessas escolas cerca de 10 mil professores, dos quais 90% são indígenas, segundo o MEC.
Jacira é um deles, representante de uma elite que começa a se formar na área da pedagogia indígena – os professores com nível superior, que saem da USP e de universidades de outros poucos Estados para assumir, de certa maneira, a responsabilidade que era exclusiva dos anciãos da tribo: transmitir conhecimento aos mais jovens.
Os pioneiros
"Esse programa começou em 2003, com a formação de professores no nível do ensino médio, e desde 2005 estamos cumprindo a segunda etapa, que é o curso de pedagogia de terceiro grau", explica Gustavo Isaac Killner, professor e coordenador da área de ciências do projeto Fispi (Formação Intercultural Superior do Professor Indígena).
Gustavo Isaac Killner, coordenador de ciências do Fispi: a educação indígena funciona melhor com professores indígenas |
Gustavo conhece todos os 81 professores indígenas que em abril de 2008 receberão os diplomas no curso, o único no Estado de São Paulo. Na entrada do auditório da Escola de Aplicação da USP, onde se realizaria um colóquio sobre o tema, ele aponta: "Aquele é o Joel, uma liderança entre os guaranis do Pico do Jaraguá. Aquela é a Jacira, do litoral sul de São Paulo, O de cocar é o irmão dela. E a Tereza, terena de Bauru".
Segundo Gustavo, na primeira etapa do curso os professores indígenas foram concentrados em três pólos: litoral, com aulas em Santos e Guarujá; região centro-oeste do Estado, com aulas em Bauru, e capital – nem todo mundo sabe, mas há sim aldeias indígenas no Município de São Paulo, em áreas como Parelheiros, na zona sul, e no Pico do Jaraguá, na região oeste. "Houve uma parte presencial, e quando voltaram às aldeias eles desenvolveram outras atividades com os alunos, relacionadas com a realidade local", conta Gustavo.
Os 81 alunos do curso atual representam 33 aldeias. "Algumas delas já tinham escolas, mas quem dava aulas eram professores não-indígenas", diz Gustavo. "A idéia agora é que todos os professores sejam indígenas, assim como os diretores e os coordenadores pedagógicos. O resultado é muito melhor, porque se trata de uma história diferenciada, em que a questão cultural se apresenta com muita força. Com esse projeto, estamos recuperando uma boa parte da cultura que vinha sendo perdida", acrescenta.
O coordenador informa ainda que o currículo básico está sendo alterado: "A idéia é fazer um currículo diferenciado para as escolas indígenas, a fim de que a cultura deles seja respeitada".
A outra história
A tupinambá Jacira é mais enfática: "Até hoje a história dos índios brasileiros sempre foi contada pelos brancos. Agora queremos contar a nossa história, a nossa versão. Está na hora".
Essa parece ser uma tendência: os novos professores indígenas querem criar um relato diferente daquele dos livros oficiais. Sem rancor aparente, preparam-se para isso. Querem ensinar aos irmãos menores uma atitude de orgulho da cor da pele, dos olhos amendoados e dos cabelos negros e lisos que identificam os índios brasileiros e, acima de tudo, querem passar adiante o que aprenderam com os pais e avós. Politicamente corretos, eles não falam em índios e brancos. Falam em indígenas e não-indígenas – na verdade, na maioria das vezes falam em brancos e índios, sim, mas logo se corrigem.
A outra tendência é igualmente positiva: as aldeias estão crescendo depressa. Ou seja, a população indígena estimada no último censo do IBGE certamente é muito maior atualmente. Por outro lado, essa expansão acentua ainda mais um problema: a necessidade de migrações. Todos os entrevistados para esta matéria relataram a ocorrência de transferência de famílias de suas aldeias, provocada pelo crescimento da população. É o típico problema causado por uma coisa boa.
"Minha aldeia ficou com superpopulação e algumas famílias tiveram de ir para outra área, em Piaçagüera, onde meu irmão é o cacique. Atualmente, na minha comunidade vivem só doze famílias, mas estão chegando mais cinco", conta Jacira, que dá aula para alunos da 1ª à 4ª série do ensino fundamental. As aulas são em tupi-guarani e em português: "Antes, em casa, ensinava-se primeiro o tupi-guarani, mas hoje muitos pais não valorizam a própria cultura, acham que a do branco é melhor e ensinam primeiro o português".
Situação parecida ocorre na aldeia terena Ekereoá, município de Avaí, na região de Bauru, onde vive Tereza Silvério, também aluna do curso que se realiza na USP. "Quando eu era criança, a primeira língua que aprendíamos era o terena, mas hoje não é mais assim. Por isso essa escola diferenciada é tão importante, para que as crianças não percam toda a nossa cultura. Como domino o idioma terena, fui escolhida para ensinar aos pequenos do curso de educação infantil", explica Tereza.
A índia Jacira, ou "A Última Luz", em tupi-guarani, faz parte do grupo de 81 indígenas que receberão em 2008 o diploma de Formação Intercultural Superior |
Ela conta que houve outras mudanças importantes em sua comunidade: "Antigamente, nossos pais trabalhavam dentro da aldeia, porque tinha mata, tinha como caçar e pescar, mas hoje não tem mais. Muitos pais vão para fora e não têm mais tempo de dialogar com os filhos. Existe uma fazenda próxima da aldeia, e quem não planta vai trabalhar nela. Os pais saem cedo e, quando voltam, os filhos já estão dormindo".
Segundo Tereza, o próprio papel do professor demorou a ser valorizado: "No começo, enfrentamos muitos obstáculos, pois achavam que não seríamos capazes de ensinar às crianças. Hoje, o nosso trabalho está mais bem aceito, mas sempre tem aquelas pessoas que acham que não estamos bem preparados". O curso superior na USP foi um grande passo para que a aldeia valorizasse os professores, como explica Tereza: "Em abril de 2008 vamos nos formar e estou contente, pois acho que vou ajudar muita gente na minha comunidade".
A professora lembra que há poucos registros escritos da língua terena: "Até agora, a única coisa que temos é um dicionário que veio do Mato Grosso, onde meus pais viviam. Mas precisamos de muito mais, pois mesmo quem fala bem o idioma encontra dificuldade na escrita".
Vida na aldeia
Na aldeia de Joel Augusto Martim Karakaimiri, no Pico do Jaraguá, arredores da capital paulista, a tradição ainda se mantém: até os quatro ou cinco anos, as crianças falam apenas o guarani, e só então aprendem o português. Gustavo Killner confirma: "O guarani é a única etnia que dá essa prioridade à língua-mãe. Mesmo os professores que freqüentam o nosso curso, quando conversam entre si, só falam guarani".
Aula do curso de Formação Intercultural Superior do Professor Indígena, na Faculdade de Educação da USP: 81 novos professores em abril de 2008 |
A aldeia do Jaraguá também passa por mudanças. "Chegamos lá na década de 1960, quando havia só uma pequena área onde moravam as famílias do meu pai e da minha mãe. Aí os filhos foram casando, constituindo famílias e, há cinco anos, quando havia 20 famílias, a comunidade teve de ser dividida em duas. Hoje são cerca de 150 famílias nas duas áreas", conta Joel. "Somos um povo nômade, tanto que o guarani está presente em muitos países da América do Sul."
A aldeia de Joel é dirigida por uma mulher: "Após a morte do velho cacique Kuaray (pronuncia-se Kuaraã), meu pai, seu lugar foi assumido por minha mãe, Jandira, a atual cacique". Não há nada de excepcional, considerando que os guaranis desconhecem a maioria dos preconceitos. Casamentos inter-raciais, por exemplo, são raros, mas não proibidos. Na aldeia do Jaraguá, segundo Joel, não vivem mais do que 10 mestiços, numa população de 350 pessoas. "Mais comum é o casamento com guaranis de outros lugares", diz.
Crianças em classe de escola indígena no Pico do Jaraguá, em São Paulo: atraso na implantação |
Na escola da aldeia, cerca de 90 alunos têm aula com nove professores, em classes da 1ª à 6ª série do ensino fundamental. "As aulas não são como nas escolas comuns. A gente não exclui a visão do homem branco, mas o conteúdo tem de ser alterado, obrigatoriamente. Por exemplo, temos uma sexta vogal, o ‘Y’, com pronúncia própria, bem diferente das demais vogais. Em matemática, numa aula convencional, aprende-se a disciplina como um conhecimento científico, com números infinitos. Para nós, guaranis, ocorre o contrário: temos apenas cinco números, correspondentes aos dedos de uma mão, e a partir desses números vamos fazendo junções e combinações", ensina Joel.
Em relação à demora na aplicação do preceito constitucional que estabeleceu a educação diferenciada, Joel – cujo nome guarani, Karakaimiri, significa "Pequeno Grande Espírito" – tem um discurso pronto: "Isso se deve à falta de interesse de vários segmentos da política brasileira. Nem todos são favoráveis à questão indígena. Boa parte é contra as tradições indígenas, e é isso que torna necessária a elaboração efetiva de uma educação apropriada para as culturas indígenas. A educação diferenciada está prevista na Constituição, mas a gente não consegue ter isso realmente efetivado perante as instâncias da educação".
O desafio do registro escrito
As línguas faladas pelas cinco etnias assistidas pelo programa Formação Intercultural Superior do Professor Indígena (Fispi) já contam com registros escritos, dos quais os mais completos são em guarani. "O que estamos fazendo agora é um trabalho de normalização [no sentido de criar normas] dessas línguas para os professores indígenas do Estado de São Paulo, a fim de que os materiais didáticos possam ser utilizados pelas crianças nas diferentes escolas", explica a professora Idméa Semeghini-Siqueira, da Faculdade de Educação da USP e coordenadora de linguagem da Fispi – a coordenadora-geral é a professora Maria do Carmo Santos Domite.
De fato, a elaboração de um código escrito para cada uma das línguas indígenas representa um dos grandes desafios do programa, na medida em que se torna a única maneira de assegurar a perpetuidade de idiomas que, em alguns casos, são falados por grupos muito reduzidos.
Idméa lembra que, mesmo nas línguas mais conhecidas, como o guarani, há diferenças na pronúncia. Joel Karakaimiri, guarani do Pico do Jaraguá, confirma que de uma aldeia para outra há diferenças importantes no aspecto lingüístico e cultural: "Por isso essa confusão dos antropólogos, que misturam tribos de guaranis e inventam subgrupos que não existem", provoca.
Outro desafio é a criação de material didático nas línguas indígenas. "Essa é uma de nossas preocupações", explica Idméa: "Criamos seqüências didáticas seguindo a metodologia do ensino de línguas. Começamos com o diálogo, depois passamos à compreensão de textos, em seguida às atividades lúdicas. Depois o diálogo é transformado em história, com temática relacionada à cultura de cada etnia. Então, estamos criando essas unidades, com a participação dos professores indígenas, até chegarmos ao material de ensino de línguas. Hoje não há quase nada. Os professores recebem o material didático em português e fazem adaptações. O que estamos procurando é trabalhar com eles uma metodologia mais apropriada ao ensino de línguas".
A passo de tartaruga
Segundo o Censo Escolar Inep/MEC 2006, a oferta de educação escolar indígena no Brasil cresceu 48,7% nos últimos quatro anos, de 117.171 alunos em 2002, em 24 Estados, para 174.255 em 2006. A partir de 2002, o número de matrículas cresceu em torno de 10% ao ano, maior índice entre todos os segmentos da população. Mais do que tudo, no entanto, essa expansão revela a dimensão de uma demanda reprimida.
No âmbito do MEC, a educação indígena é responsabilidade da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad). Entre as ações da Secad, destacam-se a formação de professores em nível médio (Magistério Indígena), em cursos com duração média de cinco anos, e a formação de professores em nível superior – licenciaturas interculturais.
Porém, o curso que se realiza em São Paulo, por meio de convênio entre a USP e a Secretaria Estadual de Educação, é uma das primeiras experiências de formação de docentes indígenas em nível de licenciatura. O principal entrave para que esse curso se estenda a todo o país é a demora no cumprimento do preceito constitucional que, em 1988, previu a educação diferenciada para povos indígenas. Só em 1999, o Conselho Nacional de Educação criou a categoria escola indígena no sistema de ensino do país.
Em 2001, o Plano Nacional de Educação estabeleceu o prazo de um ano para a criação da categoria oficial de escola indígena.
Hoje, segundo o MEC, não há números precisos sobre o reconhecimento das escolas indígenas com estatuto diferenciado, definidas pelo ministério como "algo novo no sistema". Mais ágeis, as aldeias dão um passo adiante e já reivindicam escolas de ensino médio, ainda inexistentes, num momento em que falta muita coisa a ser cumprida no ensino fundamental.
Vale refletir sobre um enunciado que está no site do MEC: "A escola, que no passado foi um dos principais instrumentos de negação da diversidade lingüística e de imposição do português como língua nacional, pode ter um papel importante na manutenção e na valorização das línguas indígenas".