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O fim dos vestibulares

A memória não é burra, não carrega o que não faz sentido

Publicado em 10/09/2011

por Rubem Alves

Minha neta tinha 16 anos. Uma menina inteligente, determinada e com a cabeça cheia daquelas ideias fantásticas que habitam as cabeças adolescentes. Estava se preparando para o vestibular. No sofá ela lia um caderno espiralado lindamente ilustrado. Biologia, ciência fascinante! Quantas revelações fantásticas sobre a vida deveriam se encontrar naquele caderno!

Mas ela lia com uma cara de absurdo. O absurdo produz uma expressão facial característica, mistura de raiva e tédio. Raiva porque é obrigatório que se engula aquilo contra a vontade. Tédio porque aquilo que é obrigatório engolir não faz o menor sentido. E que, por isso mesmo, será logo esquecido. É preciso que algum fenomenólogo descreva essa expressão fisionômica, tão frequente no rosto dos alunos que se preparam para o vestibular.

 Fiquei mordido de curiosidade e quis saber o que ela estava aprendendo de biologia para entrar na universidade. "O que é que você está lendo?", perguntei. Com uma cara desanimada ela apontou com o dedo o parágrafo que estava lendo e me passou o caderno. Comecei a ler. E, na medida em que lia, minha cara foi ficando igual à dela.  Eis o que li.

"Além da catálase, existem nos peroxíssomos enzimas que participam da degradação de outras substâncias tóxicas, como o etanol e certos radicais livres. Células vegetais possuem glioxissomos, peroxissomos especializados e relacionados com a conversão das reservas de lipídios em carbohidratos. O citosol (ou hialoplasma ) é um colóide…  No ciosol das células eucarióticas, existe um citoesqueleto constituído fundamentalmente por microfilamentos e microtúbulos, responsável pela ancoragem de organoides… Os microtúbulos têm paredes formadas por moléculas de tubulina…" Seguia-se uma descrição da complexa rede que forma o rabo do espermatozoide…

A raiva cresceu dentro de mim e quis encontrar o culpado. Pus-me a perguntar: Quem tomou a decisão de tornar obrigatório o conhecimento dessas informações? Por que esses saberes devem ser aprendidos? O que é que os adolescentes vão fazer com esses nomes? Nomes, nada mais do que nomes…  Esforço inútil porque tudo será esquecido. A memória não é burra. Não carrega conhecimentos que não fazem sentido. A memória inteligente sabe esquecer. O absurdo educacional dos vestibulares se  encontra no fato de que serei reprovado, os reitores serão reprovados, os professores universitários serão reprovados, os professores de cursinhos serão reprovados…

Agora os vestibulares  tiveram o seu fim decretado. Fico feliz porque há mais de 20 anos tenho estado lutando por isso. O que me levou a pensar muito e a escrever muito sobre esse equívoco educacional.

Mas tenho um receio. Imaginem um restaurante que servia uma comida de gosto ruim, indigesta e  que provocava vômitos e diarreia. O dono do restaurante, diante das queixas dos seus clientes,  resolve fazer uma reforma na forma como a comida era servida: trocou as panelas velhas por panelas novas e a louça branca antiga por uma louça azul. Mas a comida continuou a mesma…
Será que é possível que isso aconteça?


Rubem Alves


é educador e escritor



rubem_alves@uol.com.br

Autor

Rubem Alves


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