A leitura vista como alimento da liberdade. Ou como fonte para que se abram as janelas e arranquem as portas, tal como pedia Fernando Pessoa pela voz de seu heterônimo Álvaro de Campos
Publicado em 10/09/2011
Em
O ano do pensamento mágico
, a escritora e roteirista norte-americana Joan Didion (1934 – ) analisa o impacto que sofreu com a morte de seu marido, também escritor. E num dado momento acaba definindo um dos princípios básicos da biblioterapia:
“Em tempos difíceis, leia, aprenda, trabalhe em cima da coisa, pesquise a literatura a respeito. Fui treinada assim desde pequena. Informação significa controle.”
A leitura guiada pelo intuito terapêutico oferece um tipo de controle sobre a situação que nada tem a ver com o controle abusivo, ineficaz e ilusório que talvez gostaríamos de ter sobre a realidade. A biblioterapia não promete milagres, mas oferece algumas saídas, um controle relativo, porque sempre relativos são os controles saudáveis.
Controle, a palavra, tem a ver com rôle, em francês, “lista”, “rol”. Fazendo uma lista, conferindo uma série de aspectos de um todo complexo, obtendo uma visão mais abrangente e mais detalhada do que está acontecendo em mim e ao meu redor, já não me sinto sequestrado pela adversidade. Não me sinto submerso, envolvido a tal ponto pelas águas da dor ou da preocupação que não possa respirar, refletir e reagir.
Biblioterapia, nesse sentido, é leitura educadora. Lendo, distancio-me dos redemoinhos e dos turbilhões, crio espaço para rever conceitos, redesenhar imagens, redescobrir emoções, tomar decisões, escolher caminhos. Ponho em atividade o pensamento, a memória, a imaginação. Realimento minha crença na liberdade. Fico em paz com minha guerra, como dizia Camões. E se essa terapia se faz preferencialmente pela leitura de obras de ficção, podemos falar legitimamente em terapia literária.
O bibliodiagnóstico
Quando o poeta Manoel de Barros escreve que “os delírios verbais me terapeutam”, sabe do que está falando. Sabe do que necessita. Sabe que as palavras enlouquecidas na beleza e na criatividade podem trazer lucidez. Lucidez, num primeiro momento, e, no longo prazo, sabedoria.
A biblioterapia começa no bibliodiagnóstico. A leitura revela ao leitor problemas que ele não sabia serem tão reais. A leitura como método de conhecimento de mundo e de conhecimento próprio. Como forma de observação e auto-observação. Não é diagnóstico convencional, evidentemente, nem terapia com manuais e apostilas que bastaria consultar. Trata-se de conhecimento intuitivo, mediado pela metáfora, embalado pela musicalidade verbal, guiado por narrativas cuja lógica ultrapassa lugares-comuns e estereótipos.
Manoel de Barros, de novo: “A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos”. A linguagem desarrumada quebra o ritmo doentio de nossas rotinas e manias, de nossos preconceitos disfarçados, de nossos equívocos. Por alguns instantes que sejam, descobrimos que escapismo pode ser, na verdade, aquilo que chamamos de “responsabilidade”, e que a nossa alienação pode nascer de um pretenso autodomínio. Os mais fundos desejos, não identificados, e muito longe de serem realizados, conduzem a uma tristeza indefinida, que se instala, dissolvente, em cada ação nossa.
Fundos, profundos desejos
A leitura educadora questiona nossa superficialidade, nossa passividade, nosso conformismo – o que é terapêutico e didático. O que é, em outras palavras, humanizador. E se para alguma coisa a escola existe, existe para nos ajudar a ser melhores como seres humanos, superando primarismos e automatismos.
Ora, o primeiro passo para superar a superficialidade é admitir, com toda a franqueza e sem complexos, que somos superficiais, que ainda temos muito a aprender sobre nós próprios e sobre o mundo. Oscar Wilde perguntava num texto, em tom jocoso, quem dos seus leitores se considerava uma pessoa superficial. Sabendo que diante de tal pergunta ninguém levantaria o braço, acusava-se ele mesmo: eu, ao contrário de vocês, admito que sou superficial, porque aquele que se reconhece superficial já demonstra ser um pouco mais profundo do que a maioria dos homens…
Os desejos profundos que carregamos em segredo, e de que não temos plena consciência, aparecem nas páginas dos livros, em verso e prosa. Uma alfabetização literária autêntica permite identificar esses desejos universais como nossos também, como desejos individualizados em cada um de nós. Desejos de liberdade, de imortalidade, de felicidade, de transbordamento, de transcendência.
Numa mentalidade imediatista, pragmática, em que o mais importante é preparar-nos para o Mercado (com letra maiúscula), e que nos tornemos dóceis mercadorias humanas cujo lema será “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, tais desejos surgirão como algo subversivo, incômodo, ou, ao menos, desnecessário. Exageros da literatura, da poesia! Exageros estéticos que devem ser descartados!
É o momento de tomar o antídoto biblioterápico, de, por exemplo, ler (ler e reler em voz alta, aos gritos) esses versos de Fernando Pessoa, atuando como heterônimo Álvaro de Campos, num entusiasmo que pode não caber entre as quatro paredes de uma sala de aula, e muito menos numa planilha de custos:
Abram-me todas as janelas!
Arranquem-me todas as portas!
Puxem a casa toda para cima de mim!
Quero viver em liberdade no ar,
Quero ter gestos fora do meu corpo,
Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,
Quero ser pisado nas estradas largas como as pedras,
Quero ir, como as coisas pesadas, para o fundo dos mares,
Com uma voluptuosidade que já está longe de mim! (“Saudação a Walt Whitman”)
Os pontos de exclamação, a repetição do verbo “querer” na primeira pessoa, as imagens do mar profundo, da estrada larga, tudo, nesses versos, e no poema de que fazem parte, são ampliações do “eu”, que, sendo construção do poeta, atua sobre o leitor, chama-o a assumir esse “querer” ambicioso, a imaginar-se como chuva, como pedras, ultrapassando os limites do corpo e da mente.
Tudo isso atua como terapia. A literatura como tratamento de nossas “desumanidades” por meio de alterações induzidas em nossa imaginação, em nossa maneira de ver e sentir o mundo.
No livro
O ano do pensamento mágico
, de que falei no início, a grande obsessão que perseguia a autora era o desejo de que seu marido voltasse a viver. É preciso ter coragem para admitir coisas desse tipo. Precisamos aprender a cultivar desejos absurdos assim. Terrivelmente humanos.
Gabriel Perissé
é doutor em filosofia da educação (USP) e professor do Programa de Mestrado da Universidade Nove de Julho (SP) (
www.perisse.com.br
).