Número de leitores que utilizam suporte tradicional está em declínio no mundo; para especialistas, novas formas interagem com aquela já consagrada
Publicado em 10/09/2011
Regina Zilberman, da UFRGS: "A escola anda de patinete e a sociedade, de avião" |
A escola sempre se refere ao livro como algo positivo na educação de seus alunos. Não poderia ser diferente, afinal as instituições de ensino se sustentam em textos impressos para educá-los. Seus professores foram formados nessa cultura e nada mais natural do que passar essa maneira de aprender para as novas gerações.
Entretanto, uma ampla pesquisa da NEA (National Endowment for the Arts), uma agência do governo norte-americano para o acompanhamento do desenvolvimento das artes no país, apontou tendências nada reconfortantes para os defensores do livro como principal instrumento de formação escolar. Entre 1984 e 2004, o número de adolescentes de 13 anos que nunca leram um livro aumentou de 8% para 13%, enquanto o dos que lêem diariamente baixou de 35% para 30%. Pode não parecer catastrófico, mas o problema aumenta consideravelmente conforme a faixa etária: entre os jovens de 19 anos, ou seja, entre aqueles que estão deixando a escola, esses números passaram de 9% para 19% entre os que nunca leram e de 31% para 22% entre os que se dedicam todos os dias aos livros.
Os dados são mais reveladores quando notamos que nesses 20 anos o número de crianças que lêem diariamente por prazer permaneceu praticamente inalterado (de 53% para 54%), mas esse hábito cai vertiginosamente com o avançar dos anos: entre os adolescentes de 17 anos a porcentagem era de 31%, em 1984, de 25%, em 1999, e chegou a 22% em 2004. Ou seja, se o objetivo da escola nos Estados Unidos é formar leitores, ela fracassa.
Outros números importantes da pesquisa (disponível em
www.nea.gov/research/toread.pdf
) mostram a diminuição do capital empregado pelas famílias anualmente na compra de livros e as conseqüências dessa diminuição da dedicação aos textos: notas escolares proporcionais ao número de livros que as pessoas têm em casa, maiores dificuldades para conseguir empregos e remunerações consideravelmente inferiores entre os leitores que raramente freqüentam as páginas dos livros.
O cenário desanimador nos Estados Unidos não é muito diferente daquele encontrado em outros países ricos. Contudo, pelo menos nos dados de mercado editorial, a América Latina mostra resultados distintos. Em uma avaliação do Centro Regional para el Fomento del Libro en América Latina, el Caribe, España y Portugal (Cerlalc), editores de vários países da região apontaram melhora do cenário no último ano, principalmente em vendas no varejo, ou seja, nas livrarias, o que significa diminuição da dependência do governo, que normalmente é o principal comprador de livros para repassá-los ao ensino público. Além disso, a expectativa do setor para o futuro próximo é otimista.
Seria precipitado diagnosticar os resultados alvissareiros da América Latina como um maior equilíbrio no consumo de literatura no mundo, uma vez que a estabilidade econômica da maior parte desses países foi responsável pelo aumento de bens de consumo, inclusive culturais. A tendência global é outra, e está direcionada para a diminuição do impresso. "De acordo com vários estudos que conheço, é geral na maior parte dos países do mundo – isso em decorrência da forte penetração da escrita virtual, dinamizada pela internet, que vem velozmente mudando os hábitos de leitura das populações", argumenta Ezequiel Theodoro da Silva, professor da Faculdade de Educação da Unicamp e presidente de honra da ALB (Associação de Leitura do Brasil).
A mudança de suporte da leitura, ou seja, a migração de leitores de impressos para sistemas audiovisuais e digitais trará conseqüências para a forma de pensar das novas gerações, o que não significa um futuro sombrio. "Uma concepção de leitura e de leitor deve contemplar, hoje, todos os meios e linguagens, fazendo com que uma linguagem seja suporte para o entendimento das demais. A escrita permitindo entender melhor a imagem e, vice-versa, a imagem facilitando a compreensão crítica da escrita", reflete Silva.
"São linguagens distintas e uma não pode se sobrepor à outra", considera Adilson Citelli, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e pesquisador de comunicação e educação. Ele concorda com a afirmação de Silva e diz que "precisamos ampliar o nosso conceito de leitura".
Regina Zilberman, professora de literatura na UFRGS e autora de diversos livros sobre a leitura no Brasil, acredita que o padrão de leitura individual e silenciosa deve se modificar, mas não enxerga problemas nisso. Ela lembra que há alguns séculos a leitura era feita em voz alta para o público. "As coisas vão se acomodando e o público se adapta."
Escola perdida
Se a sociedade vai modificar suas formas de ler e de lidar com textos, o mesmo não se pode dizer da sala de aula. "A escola anda de patinete e a sociedade, de avião", brinca Regina. Ela desconfia que o ambiente escolar corre o risco de se tornar dispensável caso não se prepare para abarcar outras formas de leitura amplamente disseminadas pela mídia e cada vez mais acessíveis a todos os grupos da população.
Para Citelli, a escola precisa se ressignificar. O professor argumenta que hoje ela é uma instituição entre tantas outras e que precisa descobrir como vai se especializar no trato do conhecimento. O grande objetivo da escola, segundo ele, deve ser alfabetizar para a palavra.
Na opinião de Theodoro da Silva, o professor na escola deve "usar bom senso e criatividade na preparação de suas aulas, entrelaçando as diferentes mídias no seu planejamento de ensino e nas suas metodologias". Ele faz questão de lembrar que as mídias digitais também se sustentam na "escrita".
De qualquer modo, são poucas as instituições de ensino e os professores preparados para trabalhar com outras linguagens e, quando se sentem ameaçados por suportes que não dominam, tendem a refutá-los. "Eu não vejo as linguagens como coisas estanques, mas co-ocorrendo dinamicamente numa sociedade. Por isso mesmo, nenhum meio deve ser demonizado mesmo porque são conquistas culturais que servem para o enriquecimento da comunicação humana", pondera Theodoro da Silva.
Para que serve a literatura?
Um grande jornal lançou este ano uma coleção de títulos de literatura brasileira e a anunciou como a oportunidade de "colecionar conhecimento". Nada mais evidente do que, em uma sociedade que valoriza amplamente o caráter utilitário de tudo, tentar estabelecer para obras em que é impossível quantificar um uso a possibilidade de acumular um "bem": o conhecimento. Como estratégia de marketing, pode valer, mas se pararmos para pensar um pouco nos colocaremos a questão: para que serve a literatura em um mundo no qual tudo precisa ter uma aplicação? Para o prazer? Distração? Outros meios conseguem suprir essa necessidade humana de forma muito mais imediata.
"Ainda que os veículos digitais e eletrônicos venham galopantemente ganhando mais espaço no gosto ou preferência de grande parte da população, percebo uma convivência equilibrada desses veículos com o livro e demais veículos impressos", observa Theodoro da Silva. "Isso porque o livro, em sua forma tradicional, é um fortíssimo instrumento cultural, enraizado na consciência dos povos da forma como ele sempre se apresentou e vem sendo lido." Ele considera ainda que "o livro impõe um modo de percepção, intelecção e fruição que é muito diferente de outras mídias existentes".
Citelli indica que estamos desconsiderando uma dimensão programática no sentido de uma dimensão pragmática, ou seja, de buscar razões práticas para tudo. Para ele, a literatura não é para resolver problemas imediatos, é um compromisso maior com o ser humano. "A temporalidade da literatura é outra."
Fim do livro?
Recentemente, a grande loja de comércio eletrônico Amazon lançou um aparelho que permite armazenar cerca de 100 mil livros em formato digital, além de jornais, blogs e outros arquivos de texto. Perguntado se a Apple, depois de renascer investindo em música e vídeos, entraria também no mercado de suporte para textos, seu presidente pop star, Steve Jobs, disse que não, pois as pessoas não lêem mais livros. A afirmação ganhou manchetes de jornais, e o livro, mais uma vez, foi decretado morto.
Bem mais comedida, a revista norte-americana The New Yorker publicou uma matéria sobre as conseqüências para a população dos Estados Unidos que, paulatinamente, se dedica mais aos audiovisuais e à internet do que a livros, revistas e jornais. A reportagem cita uma série de estudos que apontam características de grupos pouco afeitos ao texto escrito, como necessidade de informações gráficas e de metáforas para compensar a falta de um vocabulário passivo mais amplo. O autor do texto não acredita na extinção da leitura e da escrita, mas considera sua diminuição e que a leitura por prazer ficará restrita a grupos de interessados.
Para o professor da Unicamp Ezequiel Theodoro da Silva, o livro tem qualidades que não são facilmente dispensáveis, a começar pelo seu formato. "O veículo ou objeto cultural ‘livro’ possui uma portabilidade insubstituível e, além disso, tem uma função importante junto a segmentos que ainda necessitam da folha impressa para as práticas de leitura", diz. "O livro não precisa ser ligado numa tomada para ser lido."
Mesmo que o impresso perca espaço para meios digitais, isso também não significa o fim da literatura. A professora da
UFRGS Regina Zilberman salienta o crescimento de outros veículos de divulgação de textos na própria internet por onde a produção literária pode se disseminar.