É preciso fazer como Michelangelo e libertar a escola do que não é escola
Publicado em 10/09/2011
As escolas alternativas crescem como cogumelos. São uma praga!
– amigo meu dixit e eu ripostei. Disse-lhe que prefiro uma escola "tradicional" que ensine a uma "alternativa" em que não se aprende. Disse-lhe que estou saturado de modismos, pois sei que os efeitos do aventureirismo pedagógico em crianças-cobaias são tão funestos como aqueles que a escola "tradicional" produz. Porém, assumi a minha principal filiação em Ferrer y Guardia, Tolstoi, Neill, Steiner, Rogers, Freinet… E o meu "tradicional" amigo deu-me réplica:
Freinet? Já ouvi falar. Conheço uma pessoa que pôs o filho numa escola Freinet, porque o filho tinha problemas…
A escola que ostenta o nome do extraordinário educador é conhecida por "escola dos deficientes". Mas foi, sobretudo, devido a uma "deficiência" que Freinet se libertou de atavismos. Durante a guerra, fora ferido nos pulmões. Compreendeu que os seus problemas respiratórios não lhe permitiriam dar aula do modo como faziam (e ainda fazem) muitos professores. Por lhe ser difícil respirar dentro da sala, levou os alunos para fora da sala. Arejou a sua escola e provocou correntes de ar em muitas outras. Imaginemos o que aconteceria, se muitos professores padecessem de problemas pulmonares, ou não pudessem utilizar as cordas vocais!…
Quatro séculos separam o Freinet moderno do Michelangelo renascentista. Recordo uma metáfora que li num livro do Mário Cortella: Perguntaram a Michelangelo como conseguira fazer a estátua de David. Respondeu:
Foi fácil. Olhei para o bloco de mármore e imaginei o David dentro dele. Depois, foi só retirar tudo o que não era David.
É necessário agir como Michelangelo, "retirar do mármore aquilo que não é David", libertar a escola daquilo que não faz sentido. É o que fazem as escolas ditas "democráticas" ou "alternativas", desde que o façam com sabedoria e responsabilidade.
Quase contemporâneo de Michelangelo, Comenius concebeu uma teoria ainda hoje considerada "avançada" e advogava uma educação em ambiente escolar arejado. Mas, durante mais de quatro séculos, os alunos foram armazenados em "estufas calafetadas", alinhados em classes (pretensamente) homogêneas e tratados como se fossem um só. Galileu – outro homem do Renascimento – respirou o ar fétido dos subterrâneos da Inquisição, quando ousou desafiar os preconceitos da sua época. Com lentes, que ele mesmo fabricava, atravessou os ares com um novo olhar, contrariando aqueles que defendiam as teses de Aristóteles e Ptolomeu. As ideias arejadas são peregrinas, permitem que a humanidade reoriente o seu complexo percurso. Mas aqueles que as defendem correm risco de martírio. Tolstoi viu fechada a sua escola a mando do czar. Ferrer foi fuzilado. A escola de Neill foi a tribunal. Freinet foi perseguido politicamente.
Ainda assim, sempre houve professores que ousaram interrogar-se:
por que há turmas, séries, salas de aula…?
Os seus olhos questionadores não encontraram nos livros de pedagogia qualquer fundamentação para que houvesse tais dispositivos. E libertaram a sua escola de tudo o que não era escola.
Há escolas de salas com porta de fechar, cujo cheiro a mofo já ninguém sente – são consideradas normais. Há outras em que as salas têm portas de abrir – são escolas anormais, ou… "democráticas". Poderão estas constituir-se em maioria? Poderá "São Freinet" ajudar-nos a estancar a sucessão de notícias que dão conta do descalabro da educação deste país? Poderão outros mártires inovadores libertar-nos dos trágicos efeitos de uma escola sem sentido? Quando findará o martírio de um país que tem os professores certos trabalhando de modo errado?
José Pacheco
é educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)
josepacheco@editorasegmento.com.br