A lua continua lembrando mistérios e abrindo espaço para a imaginação
Publicado em 10/09/2011
Cena de Voyage dans la lune (1902), clássico do primeiro cinema dirigido por George Méliès |
Darcy Ribeiro dizia que a escola pública tinha sido inventada, entre outras coisas, para formar uma "cidadania lúcida". O aprendizado dessa lucidez começa com a alfabetização e deve se aprofundar, e se expandir, na leitura.
De modo particular, a leitura de poesia produz uma lucidez especial,
insights
, estalos! Uma lucidez que não tem a pretensão de iluminar tudo, de sanar todas as dúvidas. A brincadeira "inconsequente" com as palavras nos surpreende. As rimas criam conexões. A imaginação se intensifica. Fazemos descobertas de relações inesperadas entre significado e forma, como nesse poema de Arnaldo Antunes, em seu livro
Psia
(1991):
A lua já estava previamente desenhada na palavra "lua"? A nuvem já flutuava há tempos dentro da palavra "nuvem"? E a nuvem querendo cobrir a lua, paisagem de letras no papel. Pela janela de um livro, a visão noturna que abre nossos olhos. A lua cheia, a nuvem que se aproxima.
A poesia que brinca com as palavras pode ser chamada de poesia infantil. Infantil porque livre do prosaísmo adulterado. Se os poetas ainda vivem no mundo da lua, por algum bom motivo será. A lua dos poetas, para o escritor italiano Antonio Tabucchi, em
Requiem
(1992), é também dos contistas, e faz com que uma noite se torne "ideal para ouvir histórias, e para as contar também". A lua, embora tenhamos pisado nela (conquista da tecnologia sobre a literatura), continua lembrando mistérios e abrindo espaço para a imaginação.
O poeta pernambucano Múcio Góes é outro aluado, com um pé na terra e outro no céu. Seu
poemoon
está no blog Traversuras, mistura bem trabalhada de versos e travessuras:
A própria lua é poema para quem a observa. Que a leitura seja de trás para frente (do fim para o começo, do adultismo para uma nova infância), mostrando que não estamos no mundo da rotina, da lógica inflexível, sem sustos. O poema é retorno. Mais do que conquistar a lua (nosso único satélite natural, ao passo que outros planetas têm várias luas), o poeta valoriza a calma contemplação dessa lua calma. Esta é a sua leitura, a nossa leitura.
Essas luas literárias que brilham em nossa noite vão nos convencendo de que tudo está carregado de insinuações, provocações, alusões. Aprendemos que ninguém escreve ou fala impunemente. Nunca mais seremos os mesmos, depois de um poema revelador. Não ficaremos mais desatentos às possibilidades subitamente evidentes em cada palavra.
A leitura da lua cheia
Estaremos nós, professores, preparados para educar poeticamente? Para fazer da leitura um ato de criação? Apresentando a poesia como leitura significativa e elucidativa?
A lua cheia, "sol da demência", como disse Manuel Bandeira num poema, é a fase em que a lua mostra sua face inteiramente iluminada pelo sol. Dominando o céu escuro, a lua, nessa fase, encanta os amantes e ao mesmo tempo faz pensar em lendas e metamorfoses. Bandeira prefere, nesse momento, a lua nova.
Nova ou cheia, crescente ou minguante, a lua emite sempre uma luminosidade difusa e efêmera. A lucidez da lua convive com claros e escuros. O luar mostra e esconde. Numa passagem do romance
Ciranda de pedra
(1954) de Lygia Fagundes Telles, passagem com alta densidade poética, a protagonista tem uma visão enquanto conversa com sua irmã sobre a morte da mãe:
A realidade não tem uma aparência única. O cipreste é tradicionalmente vinculado às noções de luto e tristeza. Quando a nuvem cobre a lua, a árvore torna-se mais do que uma árvore. Transforma-se num ser vivo e sofredor. E a Lua será o símbolo da mãe, cuja morte está representada pela nuvem que vem ocultá-la.
Leitura à luz da Lua será leitura de visões e desejos. E de reencontro com a poesia. Uma leitura educadora poderá buscar no clássico poema "Luar do sertão" (uma das músicas brasileiras mais gravadas de todos os tempos, letra e música atribuídas a Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco) belezas guardadas em nossa cultura e tradição. O poeta se queixa do luar escuro da cidade, luar encoberto pela luz elétrica, ou pelos prédios, ou, numa versão mais recente, pelas nuvens da poluição. Tem saudade da Lua visível e misteriosa, do contato real com a natureza:
O "sol de prata" que nasce na paisagem desperta a poesia nos corações. Essa experiência perdida deve ser recuperada de algum modo. Pois é a "coisa mais bela" neste mundo. O galo é o poeta. Sua tristeza é fruto da nostalgia de uma vida mais simples e mais pura. Parece até que a alma da Lua é que se manifesta no canto do poeta.
Monteiro Lobato, em seu
Ideias de Jeca Tatu
, apresentava esse poema como exemplo de uma poesia tipicamente brasileira, que não se envergonhava perante Baudelaire ou Verlaine. Poesia que não constava das antologias de uma certa pedagogia daquela época, primeira metade do século 20, distante do popular.
Tratava-se de um cântico ingênuo, e justamente por isso tão nosso, de uma emoção sentida, a melopeia singela. Poesia genuína, e genuinamente nacional, que deveríamos ter a coragem de admirar, como Lobato defendia:
* Gabriel Perissé
(
www.perisse.com.br
) é doutor em Filosofia da Educação (USP) e professor do Programa de Mestrado/Doutorado da Universidade Nove de Julho (SP)