NOTÍCIA
Ensino religioso é a única disciplina sobre a qual o Estado brasileiro abre mão de seu poder de determinação e fiscalização
Publicado em 10/09/2011
Se vedou, em seu artigo 19, que União, estados e municípios estabeleçam ou subvencionem cultos ou igrejas e também que mantenham com eles relação de dependência, a Constituição Federal de 1988, legitimou o ensino religioso. Afinal, no parágrafo 1o do artigo 210, capítulo 3, está escrito que o “ensino religioso, de maneira facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”. Não bastasse isso, o artigo 213 admite a hipótese de recursos públicos serem destinados a escolas confessionais.
Fábio Leite, professor de direito constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), acompanhou a votação à época e verificou que as partes envolvidas decidiram não se posicionar sobre o caráter do ensino religioso. “Houve um silêncio sobre essa questão. E é sempre difícil conseguir interpretar o silêncio”, diz, em referência a indefinição de como seria esse ensino e qual seria exatamente seu objeto.
Contrário à sua adoção, Leite acha curioso observar a divisão radical existente entre favoráveis e contrários ao ensino confessional. “Ambos entendem o ensino religioso como constitucional. Aliás, não há como discutir isso. É um aspecto objetivo. Mas no momento de interpretar as decisões sobre o tema, um grupo não aceita a visão do outro, há uma polaridade enorme.”
Em março de 2011, Leite publicará a tese de doutorado Estado e religião no Brasil: A liberdade religiosa na Constituição Brasileira de 1988 , que acaba de defender na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Em sua introdução, ele escreve: “O tema da liberdade religiosa na Constituição brasileira tem recebido um tratamento doutrinário mais simples do que o assunto efetivamente demanda”.
A liberdade religiosa é um tema complexo, pois não apenas comporta inúmeros aspectos que tangenciam a relação entre o Estado e a opção religiosa de seus cidadãos, como ainda deve levar em conta a própria peculiaridade do campo religioso. Em se tratando das questões jurídicas envolvidas na confessionalidade do ensino, ele aponta alguns complicadores.
“Remuneração pelo Estado, concurso público e estabilidade do servidor são fatores que podem comprometer uma ideia mínima de laicidade por envolver uma relação complicada de uma aproximação entre Estado e religião.”
Essa relação tênue é facilmente identificada no Rio de Janeiro, onde o ensino público é confessional, por determinação da legislação estadual. Para um professor dar aulas de ensino religioso, precisa ser validado pela autoridade religiosa. “Isso é estranho. O Estado precisa do apoio religioso para saber quem pode dar aula, o que só faz sentido na lógica confessional.” E, da mesma forma que para ser admitido o professor precisa da anuência de autoridades religiosas, se perder esse apoio torna-se inapto a estar em sala de aula.
A remuneração de professores ligados a denominações religiosas é outro tópico de embate. O que se coloca em questão é o fato de o Estado pagar para alguém professar valores e ensinamentos de uma religião específica. “Qual o interesse público nisso?”, questiona.
Uma das tentativas de elevar o debate sobre o tema foi a publicação, em 2010, do livro Laicidade e ensino religioso no Brasil , resultado de pesquisa encomendada pela Unesco à Universidade de Brasília (UnB) e à ONG Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
Uma das constatações do trabalho diz respeito ao material didático do ensino religioso. Ao analisar uma amostra de 25 livros, constatou-se a hegemonia cristã, com 65% do conteúdo abordado. No geral, os livros promovem as religiões cristãs, especialmente o catolicismo. O espaço reservado ao candomblé ou às religiões indígenas é quase “folclórico”. Elas aparecem como expressões culturais e não entendidas como religiões.
“É na escola pública que se tem a maior expressão da diversidade, de desafio ao laicismo. Não é à toa que no Brasil estamos começando esse debate por ela”, afirma a antropóloga Debora Diniz, uma das coordenadoras da pesquisa. “É um tema que toca em dificuldades profundas da relação do Estado com as religiões, na qual a educação talvez seja um dos principais entraves.”
A pesquisadora lembra que, segundo o artigo 33 da LDB, cabe aos sistemas de ensino (federal, estaduais e municipais) dizer como será feito o ensino religioso e quem é o professor habilitado a ministrá-lo. “Em nenhum outro conteúdo didático da escola pública o Estado abdicou de seu poder de fiscalização e determinação, só no ensino religioso. Isso dá uma pista de que alguma coisa muito importante está acontecendo.”
Quais hipóteses explicariam essa secção de direitos e deveres do Estado? “A falsa pressuposição de que religião é matéria só para iniciados na comunidade religiosa. Não haveria especialista secular, só religioso”, comenta Debora, para quem este é um falso pressuposto. Se isso fosse verdade, o ensino religioso não poderia ir à escola, um espaço secular, argumenta.
Outra contradição relativa ao material didático está no fato de o MEC ser a instância final de aprovação dos livros e de seu conteúdo. Há um processo de validação do material anterior à oferta do material aos estudantes. Nos livros didáticos em geral entram matérias de grande consenso das comunidades disciplinares. Já no campo religioso, o Estado se exime da atribuição de julgar os conteúdos a que os alunos são expostos. Para o MEC, o ensino religioso é assunto da alçada de estados e municípios, exclusivamente.
A estudiosa aponta alguns caminhos para modificar esse cenário. Forçar a Secretaria Nacional de Educação Básica a emitir uma resposta clara sobre esse assunto é condição inicial. “Como a Secretaria nos responde a um conjunto de evidências que denotam um problema?” Vale lembrar que a LDB proíbe qualquer expressão de proselitismo religioso.
As famílias e os estudantes seriam um segundo nível de cobranças por mudanças. “Eles têm um papel de regular, dentro do nosso marco legal, como é esse ensino.” Por fim, há o papel a ser desempenhado pelos professores.
Vale lembrar que a religião é um direito fundamental afeito ao universo particular dos cidadãos, ainda que haja garantia de organização coletiva. “Quando entra para regular a vida pública e política, começamos a ter restrições de liberdade. Estamos falando sobre qual é o jogo democrático. O ensino religioso, ao entrar na escola, tem de se submeter ao pacto educacional”, alerta a antropóloga.
O que diz a LDB | |
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. (Redação dada pela Lei n° 9.475, de 22.7.1997.) |
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