O vôo, signo da liberdade, só pode ser encorajado
Publicado em 10/09/2011
Os pensamentos me chegam inesperadamente, na forma de aforismos. Lichtenberg, William Blake e Nietzsche freqüentemente eram também atacados por eles. “Atacados” porque surgem repentinamente, com a força de um raio. Aforismos são visões: fazem ver, sem explicar. Ontem, esse aforismo me atacou: “Há escolas que são gaiolas. Há escolas que são asas”.
Escolas-gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Seu dono pode levá-los aonde quiser. Deixaram de ser pássaros, pois a essência dos pássaros é o vôo. Escolas-asas não amam pássaros engaiolados. Amam os pássaros em vôo. Ensinar o vôo não podem, porque o vôo já nasce dentro dos pássaros. O vôo só pode ser encorajado.
Esse simples aforismo nasceu de um sofrimento: sofri conversando com professoras de ensino médio, em escolas de periferia. Seus relatos são de horror e medo. Balbúrdia, gritaria, desrespeito, ofensas, ameaças… E elas, timidamente, pedindo silêncio, tentando fazer as coisas que a burocracia determina: dar o programa, fazer avaliações… Ouvindo seus relatos, vi uma jaula cheia de tigres famintos, dentes arreganhados, garras à mostra – e as domadoras com seus chicotes, fazendo ameaças fracas demais para a força dos tigres… Sentir alegria ao sair de casa para ir para a escola? Ter prazer em ensinar? Amar os alunos? O seu sonho é livrar-se de tudo aquilo. Mas não podem. A porta de ferro que fecha os tigres é a mesma que as fecha com os tigres.
Violento é o pássaro que luta contra os arames da gaiola ou a gaiola que o prende? Violentos são os adolescentes de periferia ou as escolas? Alguns dirão que os adolescentes de periferia precisam ser educados para melhorar de vida. De acordo. Uma boa educação abre os caminhos de uma vida melhor. Mas pergunto: nossas escolas dão uma boa educação? O que é uma boa educação?
Os burocratas pressupõem que os alunos ganham boa educação se aprendem os conteúdos dos programas oficiais. E, para testar a qualidade da educação, criam mecanismos, provas, avaliações, acrescidos dos novos exames elaborados pelo Ministério da Educação.
Mas será que a aprendizagem dos programas oficiais se identifica com o ideal de uma boa educação?
Professoras são obrigadas a ensinar o que os programas mandam, sabendo que é inútil. Bruno Bettelheim relata sua experiência: “fui forçado a estudar o que os professores haviam decidido que eu deveria aprender – e aprender à sua maneira…”.
O sujeito da educação é o corpo, é nele que está a vida. É o corpo que quer aprender para poder viver. A inteligência é um instrumento do corpo cuja função é ajudá-lo a viver. Nietzsche dizia que a inteligência era “ferramenta” e “brinquedo” do corpo. Nisso se resume o programa educacional do corpo: aprender “ferramentas” e “brinquedos”. “Ferramentas” são conhecimentos que nos permitem resolver os problemas vitais do dia-a-dia. “Brinquedos” são aquelas coisas que, não tendo utilidade como ferramentas, dão prazer e alegria à alma. No momento em que escrevo, ouço o coral da Nona Sinfonia. Não serve para nada. Mas enche a minha alma de felicidade. Nessas duas palavras, ferramentas e brinquedos, está o resumo da educação.
Ferramentas e brinquedos não são gaiolas. São asas. Ferramentas permitem voar pelos caminhos do mundo. Brinquedos permitem voar pelos caminhos da alma. Quem está aprendendo ferramentas e brinquedos está aprendendo liberdade, não fica violento. Fica alegre, vendo as asas crescerem.
Rubem Alves
Educador e Escritor
rubem_alves@uol.com.br