Aparentemente despretensiosos, alguns enunciados curtos trazem contundência e luminosidade capazes de instigar questionamentos iluminadores
Publicado em 10/09/2011
Em tempos de frases twitteiras, a concisão é bom exercício para pensar e educar(-se). Grandes autores de frases curtas desenvolveram a capacidade de condensar em poucas palavras o que, nas mãos dos tratadistas, pode se transformar numa infinidade de páginas. Questão de estilo. De gosto. E de objetivo.
Os aforistas disparam suas ideias com rapidez. Cabe aos leitores o trabalho de descascar esses pequenos frutos e saboreá-los. São frases cuja sabedoria e agudeza, para se manifestarem de modo completo, necessitam da agudeza e da sabedoria dos leitores. O texto breve nos obriga a criar-lhe um contexto. E a buscar modos de aplicar a descoberta dessa leitura em situações concretas.
Frases curtas são relâmpagos no céu da noite. O súbito clarão revelador nos faz enxergar alguma coisa no meio da escuridão. Que coisa será essa, exatamente? Outra luz deve ser acionada para se obter a resposta. Precisamos lançar sobre a realidade, tantas vezes obscura, a luz da nossa mente questionadora, definidora e criativa.
O escritor e dramaturgo espanhol Enrique Jardiel Poncela (1901-1952) compôs máximas que ele dizia serem mínimas. É que, reduzindo ao mínimo o número de palavras, dava às suas máximas contundência e luminosidade maiores. O aparentemente despretensioso e irrelevante, em termos quantitativos, esconde a ambição de falar algo indispensável sobre temas sempre atuais. O menos torna-se mais.
…o autor sugeria que além das nove conhecidas inspiradoras da ação humana – filhas do amor entre Zeus e a deusa da Memória, nove entidades que dialogam com os poetas, os historiadores, os músicos, os oradores… – haveria inspiração também no acidental, no casual, força imponderável, incontrolável, que nos leva a criar o inusitado por obra e graça do acaso.
A arte de educar pode e deve receber as secretas influências de Euterpe, a musa musical; de Clio, que nos lembra o contexto histórico; de
Calíope, cuja bela voz nos ensina a falar melhor; de Tália, a musa que faz brotar o riso… mas também receberá os dons da décima musa, a que trabalha com a surpresa, o susto, a formulação involuntária, o estalo, a sacada, o
insight
que ninguém planejou.
De idiomas e poliglotas
O paradoxo faz o leitor repensar seus paradigmas, exercitando-se na paralaxe. A paralaxe consiste em procurar um outro ponto de observação, produzindo deslocamento aparente (mas necessário) daquilo que é observado.
No caso desta frase de Enrique Poncela, o óbvio é visto por outro ângulo, e perde sua obviedade. O óbvio, o consensual, é que o poliglota conhece vários idiomas. Ao propor o paradoxo, alteramos nosso ponto de observação, alterando nosso parecer. Passamos a olhar o poliglota como alguém que, ao contrário, é aquele que não é poliglota!
Rejeitamos a contradição ou decidimos pensá-la? Conquistamos um novo ponto de vista ou voltamos a ter uma só opinião. Educar-se é pensar as contradições, o intrigante, o provocativo. É ampliar a consciência. Como entender a nova afirmação de que os melhores poliglotas só conhecem um idioma?
Uma primeira ideia é que, dentro de um idioma, há vários idiomas. O monolíngue é poliglota na medida em que aprofunda os inúmeros caminhos do idioma. Podemos falar diversas línguas dentro da língua. A língua popular, a língua acadêmica, a língua amorosa, a língua futebolística, a língua política, a língua poética, a língua sacana, a língua puritana, a língua religiosa, a língua furiosa, e tantas outras.
Em contrapartida, o poliglota pode ser menos competente, linguisticamente falando, se não souber o que fazer com esse múltiplo saber. Conta-se que um político queria apresentar ao falecido Tancredo Neves um possível assessor. E elogiava esse seu protegido, jovem brilhante, talentoso, enfatizando uma e outra vez que o tal rapaz dominava vários idiomas, era um poliglota, expressava-se em seis línguas. O desconfiado Tancredo não dizia sim nem não. À insistência com que o outro alegava que o rapaz dominava seis idiomas, que era poliglota, o futuro presidente respondeu com uma pergunta fulminante: “E o que esse rapaz diz de tão interessante em seis idiomas?”.
O poliglotismo por si só não diz nada. E aquele que, mesmo sendo monoglota, sabe expressar-se com riqueza em seu único idioma, conversando com diferentes falantes, em diferentes modalidades, comunica-se melhor.
De sonhos e roncadores
Em geral, a palavra “sonho” nos faz imaginar as mais belas imagens de um mundo melhor, de uma sociedade mais harmônica, de uma educação de qualidade. A verdade, porém, é que poucos sonhos se realizam. Os sonhos que “se roncam” produzem muito barulho por nada, um barulho que se torna incômodo. Sonhos roncados em geral são os sonhos esquecidos na profundeza do sono.
Um certo romantismo educacional refere-se aos sonhos como atividade sublime. Contudo, sonhos roncados de quem vive dormindo permanecem no mundo onírico. Para que os sonhos se realizem, é preciso acordar.
Outra frase sobre roncos:
Nada contra os sonhos. Mesmo sabendo que a humanidade ronca e se aliena, cabe ao artista fazê-la sonhar. E o mesmo se diga de nosso papel de professores. Mesmo que muitos estejam roncando – roncos relacionados a projetos irreais, discursos demagógicos, soluções didáticas nada didáticas, parâmetros e diretrizes
irrealizáveis -, o professor acorda e vai sonhar acordado.
Roncar sonhos, metaforicamente, é também jactar-se, soltar bravatas. Muito cuidado devem ter os que escrevem sobre educação! Se o papel tudo aceita, aceita com facilidade o sonho pedagógico. Utopias são bem-vindas, contanto que nos tirem da inércia.
Uma característica dos roncadores de sonhos é descrevê-los com tanto enlevo, tanta emoção, que acabam produzindo mais sono. O melhor é voltar a dormir!
Os sonhos existem para deixar de ser sonhos.
A maior prova de lucidez é sonhar que estamos acordados.
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Gabriel Perissé
(www.perisse.com.br)
é doutor em Filosofia da Educação (USP) e pesquisador do Núcleo Pensamento e Criatividade (NPC)