Lembranças de um mestre que ensinou mais do que percebeu ensinar
Publicado em 10/09/2011
Entre o final da década de 70 e início dos anos 80, mantive secretas conivências com educadores anônimos, a quem muito devo. Somos feitos de encontros com outros seres. Evocarei um deles, postumamente, para não ferir a sensibilidade de alguns, que ainda estão vivos e mereceriam idêntica homenagem. Em poucas linhas, resgatarei a memória do Professor Queirós (assim mesmo, com letra maiúscula), homem sóbrio e de uma honestidade intelectual tocante – um homem bom.
Tudo começou quando alunos da Ponte descobriram um texto, numa pesquisa realizada entre edições antigas do jornal da cidade. Quiseram entrevistar o autor do texto. E ele, com imensa paciência, acompanhou as crianças num estudo sobre o nascimento do nosso primeiro rei, que as levou a concluir que Afonso, filho de Henrique, não nasceu dentro dos muros do Castelo de Guimarães, como um "filho de algo", mas veio ao mundo, durante uma caçada, no meio do mato…
Quando o Professor Queirós ousou defender essa hipótese, deparou com incompreensão e desdém. Um regime idiota, uma universidade conservadora e as obsoletas escolas que nesse tempo ditavam leis votaram a tese ao ostracismo. E, mais do que sofrer marginalização, o Professor Queirós foi prejudicado na sua vida pessoal e profissional.
Não era apenas um homem resignado, era um homem digno. E, só pelo facto de, serena e humildemente, ousar defrontar a imbecilidade reinante na época, já mereceria a minha admiração. Porém, aquilo que mais me fascinava naquele homem era muito mais que a sua humildade natural. Aprendi mais nos seus gestos do que nas parcas palavras que pudemos trocar.
Via-o passar em frente à nossa escola. Seguia-o com o olhar, até o dia em que fui no seu encalço, na intenção de lhe falar. Nesse dia, não cheguei à fala, mas confirmei que o amor e a vida são uma mesma realidade e que é o amor que confere significado à vida.
O Professor parou no meio de uma clareira do bosque. Observei-o, num perfil sereno, num recolhimento que não lhe permitia pressentir a minha presença. Hesitei entre ficar ou deixá-lo só. Decidi voltar à escola, quando o Professor se ajoelhou e uma espécie de aura o envolveu. Não exagero! Ali, não estava apenas um homem ajoelhado. Não se tratava apenas de uma comunhão plena com a beleza natural do lugar, mas de um recolhimento tão profundo, que me transmitia um sentimento de transcendência.
Que o Professor, onde quer que repouse, me perdoe a inconfidência, mas terei de confessar que foram muitas as lições que, sem o saber, me deu. Foram muitos os dias em que o vi, na perfeita harmonia de um corpo em oração, afagado por raios de sol coados pelos eucaliptos da bouça. Depois, através da janela da escola, eu espiava o seu regresso a casa, caminhando tranquilo, usando um lenço para enxugar lágrimas. Se um homem se emociona a ponto de chorar, alcança a minha maior admiração. Por isso, tantas vezes o admirei. Que me perdoe ter assistido às suas secretas liturgias, e considere essa indiscrição como singelo preito.
O Professor Queirós foi para mim um exemplo de amorosidade. Foram os seus gestos simples, sem alarde, que me atraíram e cativaram. Ensinou-me que o amor não se explica, apenas se vive. Com ele aprendi a amar coisas que, antes, considerava insignificantes. Ele nunca soube o quanto me ensinou.
José Pacheco
é educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)
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