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Estrada da vida

Ao acompanhar os pais, filhos de profissionais circenses são obrigados a mudar de escola várias vezes por ano; em tese, legislação garante matrícula

Publicado em 10/09/2011

por Tânia Fernandes





O garoto Mateus Felipe de Jesus Silva, trapezista, acrobata, equilibrista e estudante: curiosidade dos colegas


Um dia aqui, outro acolá. No cotidiano de quem trabalha com o circo itinerante, assim que as cortinas se fecham, a realidade volta à tona. Palhaços e trapezistas deixam suas fantasias para retomar papéis reais de pai e mãe que levam seus filhos de uma cidade para outra, constantemente. A família se movimenta em função do circo. Muitas crianças brasileiras, filhas de pais circenses, encontram-se nesta situação: a cada mês tentam se ambientar a uma nova cidade.

Os filhos de pais que trabalham com atividades artísticas itinerantes têm uma proteção legal para que seus estudos não sejam prejudicados: a garantia de matrícula. Desde 1978, o artigo 29 da lei 6.533/1978 estabelece que as crianças têm vaga garantida na escola pública mais próxima do local em que os pais estão trabalhando. Mais: assegura a transferência da matrícula e vaga em qualquer série dos ensinos fundamental e médio, mediante apresentação de certificado da escola anterior. Pela lei, as escolas particulares (mediante pagamento de mensalidade proporcional ao tempo de permanência) também são obrigadas a aceitar os alunos.

Ainda não há dados consolidados – a Fundação Nacional das Artes (Funarte) está elaborando um recenseamento dos circos espalhados pelo país ­-, mas a estimativa é de que existam 500 circos no Brasil, de tamanhos variados. Ao contrário do que se imagina, nem todas as crianças abandonam a escola por sempre estar em locais diferentes. Chamadas de alunos-cometa, elas apenas não têm escola fixa – empenham-se para estudar em qualquer unidade pública ou particular na cidade em que o circo se apresenta.
Para dimensionar a frequência das mudanças por conta do circo, Rejane Vargas, de 23 anos, hoje aluna de um curso de pós-graduação em eventos, conta que estudou em mais de cem escolas adventistas. "Certa vez, ela iniciou o ano letivo em Fortaleza e terminou em Florianópolis", conta a mãe, também circense, Valdete Angélica Vargas, integrante do Circo Spacial. Segundo Valdete, quando o circo tem tradição de mudar muito de local, as crianças passam por mais de 13 escolas por ano.

Nesse cenário, acompanhar o conteúdo ministrado na nova escola é um problema recorrente entre esses alunos. A professora aposentada Margarida Pedroso Peramezza deu aulas para algumas crianças circenses em uma escola municipal da Ponte Rasa, na zona leste de São Paulo. Ela lembra que, na maioria das vezes, eles estavam defasados em relação ao que se estava trabalhando em sala de aula. "Eu e outros colegas fazíamos acompanhamento e uma adaptação de conteúdos mínimos. Mesmo porque eles ficavam no máximo três meses na escola", comenta a pedagoga. Para saber qual o nível de conhecimento dos alunos, Margarida aplicava um teste, que funcionava como uma espécie de reclassificação.

Para evitar problemas com as grades curriculares diferenciadas, Marlene Olímpia Querubim, proprietária do Circo Spacial, matricula os estudantes no Colégio Metodista ou Objetivo, na unidade que estiver mais próxima do circo. Mesmo assim, a malabarista Carol Rigoletto, de 19 anos, sobrinha de Marlene, conta que estudou genética quatro vezes durante o ensino médio. "Em cada escola a que eu chegava, o conteúdo era o mesmo", lembra a garota, que hoje faz educação física na Uninove, em São Paulo.


As dificuldades das mães


O trapezista, acrobata e equilibrista do Circo Spacial Mateus Felipe de Jesus Silva, 13 anos, está concluindo a 6ª série do ensino fundamental. Em cada nova escola, ouve questionamentos curiosos dos colegas sobre seu cotidiano. "Todos perguntam como eu almoço, janto, se tem banheiro no trailler, ou onde eu durmo", relata. Tímido, o garoto é acrobata desde os seis anos de idade. Aos três já se apresentava como palhaço. Para ele, há um lado positivo em estudar em diversas escolas: "é sempre um lugar diferente, não se enjoa dos professores, nem dos colegas".

Assim como Mateus, Joelma Costa, 40 anos, pesquisadora e cientista social pela Unesp de Araraquara, era a atração quando chegava à sala de aula. De família circense, viveu dos três meses aos 15 anos no circo Disparada, que hoje não existe mais. Durante todo esse tempo viajou com a família pelo interior de São Paulo e de Minas Gerais. "Ficávamos quatro dias na cidade e, mesmo assim, íamos à escola." Muitas vezes sua mãe – que tinha quatro filhos em idade escolar – não era bem atendida nas escolas, em especial em cidades pequenas e distantes dos grandes centros. "O corpo gestor da escola, secretaria e atendentes têm pouca informação e muita má vontade", conta. Ela precisou recorrer à diretoria de ensino ou à própria prefeitura para ter seus direitos legais atendidos.

Hoje, a situação continua parecida. Muitas mães pensam em desistir diante das negativas da escola e da burocracia que emperra o processo. Para Ermínia Silva, historiadora e doutora em história pela Unicamp, o fator complicador está no trâmite legal. Para que uma criança frequente a escola mais próxima do circo, pública ou privada, é preciso um atestado da escola anterior, que demora, em média, quinze dias para ficar pronto. "Quando sai o protocolo de atendimento ou transferência escolar, o circo já está em outro local", explica.


Passaporte


Para Joelma, deveria existir uma espécie de "caderneta" ou "passaporte" carimbado, com currículo e aproveitamento. Marlene, também presidente da União Brasileira de Circos Itinerantes, concorda e ressalva: "a lei garante o direito ao filho do circense, mas quem descumpre a determinação não tem punição". Faltam ações para desburocratizar o sistema, principalmente no âmbito federal. Para Marcos Teixeira Campos, coordenador de Circos da Funarte, há um entrelaçamento de problemas que provém da desinformação. Muitos circenses não conhecem a lei, ou, se conhecem, não oficializam a recusa da escola ao Conselho Tutelar, e secretarias da Educação. "Outro problema é que, muitas vezes, a própria cidade desconhece a legislação", diz Campos. Para ele, há uma certa intolerância por parte das secretarias municipais em aceitar o circo. Quando era uma adolescente, Joelma tinha a mesma impressão. Para as outras pessoas, do bairro, da escola ou da cidade, a criança já chega dando problema. "Era aquele que dispersa a atenção na sala de aula, não acompanha os outros alunos e só vai dar trabalho ao professor."

Autor

Tânia Fernandes


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