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Entre o direito e a obrigação

Obrigatoriedade do ensino não é determinante para o aumento das matrículas e para a permanência dos estudantes na escola


Adolescentes em sala de aula de escola em Brasília: educação obrigatória para crianças e jovens entre 4 e 17 anos

Com a aprovação do Senado Federal no dia 28 de outubro da Proposta de Emenda Constitucional 96 A/03, a educação passa a ser obrigatória e gratuita para crianças e jovens entre 4 e 17 anos de idade. Em uma leitura rápida e simples da questão, a força da lei pode parecer um caminho viável para a garantia dos direitos fundamentais da população brasileira.

No entanto, entidades e especialistas criticam o modo apressado como o texto foi debatido e votado. Se, por um lado, é reconhecido que o acesso à escola desde os 4 anos de idade reflete positivamente no desenvolvimento escolar do educando, por outro, contesta-se a legitimidade de atribuir aos pais a obrigação das matrículas, como se o problema do déficit educacional brasileiro estivesse na demanda, e não na oferta. "O argumento para essa lei é que o pobre não vai à escola. Isso é uma falácia. É a escola que não vai até onde as crianças pobres estão", critica Vital Didonet, assessor da Organização Mundial para Educação Pré-Escolar.

Ele afirma que a educação, em todas as etapas, e especialmente na educação infantil, é um direito e uma necessidade. A família trabalha fora e há crianças que ficam na rua ou em casa, brincando em espaços restritos, cuidando dos irmãos ou vendo TV. Na creche e na pré-escola, a criança brinca, tem acesso a materiais diversos, lê livros, conta com profissionais capacitados, vive dramatizações e recebe estímulos à fantasia. "Essas são coisas que qualquer criança, pobre, de classe média ou rica não terá se ficar isolada em um barraco ou em um apartamento", afirma Didonet.

No entanto, se as famílias precisam da educação infantil e há filas por falta de vagas, não faz sentido responsabilizar os pais, sugerindo que eles é que estão descuidando da educação dos filhos. "Não se poderia dar um passo como esse, de mudar a Constituição, sem a mínima discussão. Essa lei tira o foco da responsabilidade do Estado e a coloca nos pais. Só que tudo isso, nacional e internacionalmente, deixa o Brasil numa posição escamoteada de que está cumprindo o seu dever. Creio que a solução não esteja na obrigação, mas na oferta com qualidade", pondera.

Desde 1971, com a Lei 5.692, o Brasil tem como obrigatório o ensino dos 7 aos 14 anos. Em 2001, o Plano Nacional de Educação estabeleceu um ano a mais para o ensino fundamental, que passou a ter 9 anos de duração (dos 6 aos 14). Porém, a história recente do país aponta que apenas a obrigatoriedade do ensino não resulta diretamente em mais crianças na escola. Mesmo depois de quase 30 anos do estabelecimento da obrigatoriedade do ensino, o atendimento no Brasil beirava os 70%.  Só quando o Fundef surgiu, em 1996 (Lei 9.424/96), foi que a marcha rumo à universalização do ensino aconteceu, atingindo a marca de 97% dos indivíduos em idade escolar atendidos (segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, Pnad 2007).

Fica claro, portanto, que não foi a obrigatoriedade o fator determinante do crescimento das matrículas, e sim a estratégia de política pública adotada – no caso, o financiamento, que estimulou estados e municípios a irem em busca das crianças que estavam fora da escola, já que cada uma representava mais dinheiro em caixa. Isso também mostra que a ação do Estado é decisiva e que, quando há oferta, os pais das classes mais pobres não se negam a matricular os filhos. "Esse discurso não é honesto. Dá a entender que eles não sabem da importância da escola, ou que precisam dela exclusivamente para evitar deixar os filhos presos no barraco ou longe de abuso sexual e trabalho infantil, o que não é verdade", afirma Didonet.

Outro aspecto potencialmente negativo da aprovação da PEC 96 A/03 é que ela exclui da obrigatoriedade as crianças de 0 a 3 anos (etapa da creche). O texto vai contra todos os esforços das entidades e dos especialistas da educação infantil para dar unidade ao processo educativo de crianças de 0 a 6 anos. O objetivo era justamente consolidar essa fase da vida como uma etapa única (que se organiza por faixas de idade – creche e pré-escola -, mas que têm unidade de conteúdos e questões relativas aos cuidados). Colocada como não obrigatória, a creche perde força e segue no mesmo movimento em que se encontrava toda a educação infantil, o ensino médio e o EJA até agora: se a matrícula não é compulsória, o Estado se omite de seu dever de oferta.

Como a creche e a pré-escola ficaram por muito tempo sob responsabilidade da assistência social, eram vistas como espaços de alimentação, saúde, higiene e bons hábitos. A educação não era uma premissa. Com a LDB, em 1996, a etapa migrou (ao longo de três anos) para a pasta da educação. Com isso, creche e pré-escola passaram a ter como missão cuidar e educar os menores. "Hoje, com o avanço da psicologia, da psicanálise, da pedagogia e da neurociência, sabemos que os três primeiros anos de vida são determinantes na constituição da aprendizagem da pessoa, pois é nesse período que se formam as estruturas sinápticas cerebrais. A criança precisa de estímulos sociais, cognitivos e afetivos para a construção de valores, da autoimagem, da socialização e das condições de aprendizagem. A lei rebaixa a creche e colabora para o retorno da mentalidade de que essa é uma fase pouco importante", defende Didonet.

E, se a questão em torno da obrigatoriedade fica no ombro dos pais, o debate sobre o direito à educação também deve acontecer em relação ao ensino médio. Afinal, de que forma poderá a família obrigar os filhos a irem à escola sem entrar, novamente, na questão da qualidade? "Quando se fala em obrigatoriedade, devem-se levar em conta as peculiaridades do adolescente e da criança como pessoas da informação. O Estado precisa criar medidas de sedução, ou seja, criar estímulos para que os estudantes – principalmente os adolescentes – possam frequentar as escolas de boa vontade, e não por imposição", pondera Motauri Ciocchetti de Souza, promotor da infância e juventude de São Paulo. "A escola deve ter qualidade suficiente para que o jovem não só se matricule, mas queira permanecer. E isso deve ser estimulado com o incremento dos cursos profissionalizantes, de forma a ser uma opção para entrada no mercado de trabalho", acrescenta.
(Meire Cavalcanti e Cristiane Marangon)

Autor

Meire Cavalcanti e Cristiane Marangon


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