Arte e mistério: essas eram as chaves da transformação para o poeta mineiro Murilo Mendes. Chaves que, no seu caso, abriam as portas de uma lúcida embriaguez
Publicado em 10/09/2011
Na “microdefinição do autor” que o poeta mineiro Murilo Mendes (1901-1975) escreveu em 1970, confessava estar constantemente bêbado de literatura, arte e religião, suas maiores paixões, ao passo que era “imbêbado de política, economia, tecnologia” – tinha declarada desconfiança quanto ao poder transformador do que não fosse arte e mistério.
A lucidez da embriaguez poética era seu estado natural. Murilo Mendes exercitava amores e ódios, vivia as tensões do seu tempo, abominava as guerras, amava a música, temia as ditaduras, cultivava a amizade. Sentia com particular intensidade as contradições do mundo e as de cada indivíduo. Sua obra está mergulhada num humanismo cheio de perplexidade e esperança.
Ver bem e ouvir bem podem ser um suplício maior que não ver e não ouvir.
(O discípulo de Emaús)
O paradoxo guia o pensamento poético de Murilo Mendes. A visão e a audição apuradas levam ao sofrimento. A sensibilidade é fonte de aprendizado, caminho necessário de descobertas, pois nada chega ao entendimento e nada faz muito sentido sem passar pelos cinco sentidos, mas saber o que acontece pode trazer consigo surpresas dolorosas. Esse é o preço do conhecimento. A dor de conhecer a realidade está inscrita na condição humana.
E esse conhecimento se amplia quando aprendemos a ler. A leitura constitui uma forma radical de alimentar-se:
No tempo em que eu não era antropófago, isto é, no tempo em que não devorava livros – e os livros não são homens, não contêm a substância, o próprio sangue do homem? – no tempo em que não era antropófago […].
(A idade do serrote)
A comunhão cristã está escondida nas entrelinhas dessa antropofagia “letral”. Tomai e comei, tomai e bebei os livros – eles são o saber suculento. Quem se alimenta de autores com essa convicção põe em prática a leitura educadora. O substancial do humano (o diabólico e o divino que residem no humano) está contido nos livros, para ser devorado e digerido por nossa fome infinita.
De fato, Murilo considera os livros objetos à parte, não estivesse ele tão ligado ao cristianismo, religião que prestigia um livro cheio de livros, a Bíblia:
É preciso considerar num livro, por mais medíocre que seja, não apenas um objeto, mas a própria transpiração do espírito dum homem – e estender-lhe também a caridade.
(O discípulo de Emaús)
Imagens sobrenaturais do mundo
Bêbado com leituras e fé, Murilo Mendes enxerga tudo com visão poético-religiosa. O mundo natural e o sobrenatural são um só, ou, ao menos, dependem um do outro, estão sempre conversando entre si. As realidades mais caseiras lhe inspiram arcanos e enigmas, como quando, criança, deparou com uma tesoura no cesto de costura de sua mãe e teve uma visão:
Quem ousaria dizer que a tesoura serve só para cortar? Ela abre diante de nós – consenciente – em forma plástica, reduzida, o grande X do universo.
(Poliedro)
Muito ligado ao concreto, ao palpável, o poeta está sempre pensando em proparoxítonas transcendentes: o cósmico, o apocalíptico, o escatológico, o insólito.
O mundo não deve ser tão velho assim, porque os homens ainda não aprenderam a voar.
(Retratos-relâmpago)
Pois é nisso que dá viver bêbado de imaginação. O poeta acredita que a evolução ainda está a caminho, mesmo que aos tropeços. Ainda não aprendemos a voar por nossa conta. Aviões e foguetes são etapas de um voo maior, que um dia faremos sem a ajuda de artefatos. Mas não o faremos sem a palavra. Desde sempre a palavra é sagrada, é o que sabem os poetas. E Murilo Mendes de tal modo se apaixonou pela poesia que a ela se uniu e criou os “murilogramas”.
O murilograma que faltou
O murilograma é uma forma poética original, pessoal, única, um telegrama de Murilo que lhe permite comunicar-se com todos, com o Criador, com gênios como Bach, Rimbaud e Hölderlin, com vivos e mortos. Estão reunidos no seu livro Convergência, de 1970. Mas nessa coletânea faltou pelo menos um murilograma. Um murilograma ao professor Aguiar, personagem que o poeta nos apresenta em outra obra, A idade do serrote.
O professor Aguiar foi mentor de Murilo adolescente. Sua força docente estava em dar “um tiro na nossa rotina mental”. Era mestre de inteligência aberta para o todo, cinquentão celibatário, especializado em fazer “perguntas insólitas”, provocando no jovem mais sede e mais fome de realidade e de mistério:
O professor diz que a função da filosofia é ortopédica, ajudando a restaurar o mundo deformado; convida-nos a “brincar de pensamento”; quando é que começamos a pensar, diz, não quero saber a época, se na infância, adolescência ou mocidade; quero saber exatamente o dia, a hora, o minuto em que irrompeu no nosso cérebro o jato, o jeito de pensar; o minuto preciso, impecável […]
O “x” do universo, o pensamento que nos faz voar para além dos limites e constrangimentos, a comunicação com todos, e o poeta continua faminto.
Essa fome existencial aproxima-o do Verbo feito carne. O ponto alto da poesia muriliana é a síntese entre religião e metáfora, entre tempo e eternidade.
No poema “A ceia do poeta”, talvez num restaurante, já com o prato à sua frente, o poeta se perde (e se encontra) na meditação, que lhe descortina um horizonte de proporções sobrenaturais:
Diante do prato em que
apenas toquei
Medito no dia em que multiplicaste pães e peixes,
Tu que sacias a fome e a
sede do universo.
Aquele milagre anunciava outro muito maior:
Tu te repartes em milhões
de seres
Que se consolam e se consolarão em ti eternamente.
Continuas a nascer todo
o dia entre os homens,
Nos quatro cantos do mundo,
mal se ergue o sol.
E estou unido a ti pela
meditação e o rito,
Como se te conhecera em
tua vida terrestre.
Podemos imaginar o professor Aguiar lendo esse poema, e perguntando ao poeta, e a nós, com sua didática sem concessões ao comodismo mental: – Mas será esta, poeta, a última ceia?
Gabriel Perissé
é doutor em filosofia da educação (USP) e professor do Programa de Mestrado da Universidade Nove de Julho (SP)