NOTÍCIA
Para coordenador de grupo da UFMG e novo consultor do Inep, ensino público está longe de poder ser prejudicado por condicionar recursos orçamentários ao desempenho de escolas
Publicado em 10/09/2011
Coordenador do Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais da Universidade Federal de Minas Gerais, o professor José Francisco Soares, mestre em Estatística e pós-doutor em Educação, faz parte de um time de pesquisadores que, desde meados dos anos 90, tem trazido uma nova dimensão à educação brasileira: a da avaliação de escolas e sistemas públicos a partir de métricas de desempenho, aferidas por meio de instrumentos como o Saeb e a Prova Brasil.
Desde o início do ano atuando como consultor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Soares acredita que o país já caminhou vários passos na avaliação dos sistemas, mas concorda que ainda há muito que fazer em relação às escolas. E diz na entrevista a seguir, concedida ao editor Rubem Barros, que a educação brasileira ainda está bem distante de um estágio em que possa ser prejudicada por se pautar por métricas de desempenho.
Com a vinculação de recursos ao desempenho, não corremos o risco de ir de um extremo a outro, ou seja, da não existência de métricas para uma educação toda pautada por avaliações?
Falando em educação escolar, é preciso dividi-la em sistemas e escolas. Os sistemas precisam de metas – cognitivas, de acesso, de permanência, de desempenho. As metas para a escola são completamente diferentes. Além dessas, deve haver outras, claras e atingíveis. A escola existe, além do cognitivo, para a convivência, para o aprendizado de cidadania – várias outras finalidades. Mas é razoável imaginar que uma boa escola atinja metas nesses setores também. O que tem de ficar claro é que o tempo de o sistema escolar e a escola não terem nenhuma dimensão de resultados acabou.
O senhor vislumbra a possibilidade de as avaliações abarcarem outras inteligências que não a lingüística e a lógico-matemática?
A avaliação é um processo de registrar os resultados. A idéia de que a escola produz resultados para os alunos e para a sociedade é importante. Não se captam os resultados apenas para uma avaliação formal. Na sala de aula, todo aluno tem o direito de ser avaliado pelo professor. A forma de o professor avaliar o aluno não é sempre a prova e o registro. Freqüentemente, é a observação. Mas é importante que o professor verifique, da maneira que melhor lhe aprouver, se o aluno está caminhando ou não. Essas outras inteligências teriam de passar pelo mesmo tipo de processo. Mas creio que está muito longe de o levantamento estatístico contribuir nesse sentido. O projeto pedagógico não é e não pode se resumir à avaliação. Temos de ter espaço para essas atividades. Mas elas também devem produzir resultados tangíveis para os alunos e para a sociedade. Apenas não vai ser essa avaliação a base que dará a informação da qual se precisa.
Quando se vincula a distribuição de recursos a essas disciplinas [Língua Portuguesa e Matemática], não se corre o risco de a escola deixar outros campos de saber de lado?
Toda avaliação tem efeitos colaterais. O fato de o processo de avaliação virar o projeto pedagógico ocorre em vários lugares, com a redução do que se ensina àquilo que aparecerá no exame. Isso está ocorrendo nos Estados Unidos, já aconteceu na Inglaterra. Mas é importante dizer que o estado que vivemos hoje, sem nenhuma medida de resultados e sem preocupação do sistema escolar de dizer à família e à sociedade o que ocorre dentro da escola, também tem efeitos ruins. Estamos longe de viver uma situação em que as avaliações prejudiquem um projeto pedagógico. O que vemos é a ausência desse projeto.
O que todas essas avaliações estão mostrando que ainda não sabíamos?
Falemos de leitura: [a constatação] do que o aluno típico brasileiro não consegue é surpreendente. Gosto de me referir ao Saeb, que usa um poema de Manuel Bandeira, Porquinho-da-Índia, que só é entendido por cerca de 20% das crianças de 4ª série. Quando alguém minimamente culto, que conhece o poema, verifica que, depois de quatro ou cinco anos na escola, a criança não entende uma expressão artística tão bonita, de fato é uma surpresa. Quando a escola era restrita e excludente, certamente se conseguia isso. Havia ainda uma idéia no imaginário das pessoas de que a escola pública era uma boa escola, mas era aquela escola pública que desapareceu, que servia a poucos.
Já temos os instrumentos necessários para avaliar a educação brasileira?
Temos bons instrumentos para o sistema escolar, mas não para a escola. Qual a diferença? Na escola, estamos preocupados com o aprendizado do aluno, com o que ele aprendeu desde quando chegou até quando saiu. Então, tenho de saber onde ele estava, e aonde chegou. É diferente de registrar o conhecimento do aluno num único ponto. Ou seja, qual o valor agregado pela escola? Quanto um aluno conseguiu a mais pelo fato de freqüentar aquela escola específica. Para isso, é preciso ter uma escala que permita situar o aluno ano a ano. As que temos geram valores do 5º e 8º anos do fundamental e do 3º ano do ensino médio. No meio, ainda há um vácuo.
Metodologicamente, o caminho está adequado?
O salto que precisamos dar de imediato é o de poder captar o que a escola acrescenta ao aluno, mas também precisamos de uma escala de conhecimento científico, além das disponíveis (leitura e matemática). Está claro que precisamos nos perguntar quanto de conhecimento científico os alunos do sistema têm. Alguns diriam que precisamos ter também uma escala de tecnologia da informação. Entendo que sim, mas o conhecimento científico é mais importante até para o exercício da cidadania em relação ao aquecimento global, à preservação, temas que vieram para ficar.
E esses resultados estão gerando algum tipo de mudança?
Nossa metodologia se tornou muito complexa e não houve ao mesmo tempo um esforço de divulgação que fosse além do jornalístico, no sentido episódico. A avaliação não precisa ser divulgada, precisa ser entendida, entrar na rotina do sistema. E precisa vir com a oportunidade de instrução, de treinamento, o que não houve. Gastou-se muito dinheiro, mas não nisso. Esse é um ponto que está sendo corrigido. O MEC está fazendo um grande esforço, no âmbito da Prova Brasil, para criar oportunidades para que as pessoas dos sistemas possam qualificar-se.
E a escola?
Enquanto o Saeb é amostral, outras avaliações, como a Prova Brasil, são censitárias: todas as escolas são avaliadas. É preciso estar muito mais perto da escola. Ou seja, a crítica de que a escola não se apropria dos resultados é pertinente. Mas, será que a escola tomaria a iniciativa de usar o resultado se não houvesse a decisão institucional de realizar a prova? Há muito ou quase tudo a se fazer em relação à escola, mas não posso criticar a idéia inicial da geração do resultado. Há esforços na relação com os sistemas, mas ainda há pouquíssimo esforço para auxiliar a escola para se apropriar disso.
Quais são esses esforços em relação aos sistemas?
Quais são os indicadores de sucesso de um sistema? Em primeiro lugar, criaram-se vagas para todos, o que se afere pelo censo demográfico. Outro indicador é o de fluxo. Se os jovens matriculados permanecem na escola e concluem as etapas. São dados do censo escolar. Nessas duas dimensões, acesso e fluxo, há instrumentos que criaram a possibilidade de, em qualquer sistema, saber quantas são as pessoas, por exemplo, de 15 a 17 anos que não estão na escola. É uma informação importante. É impossível gerenciar um sistema municipal de educação sem saber quem está ou não está na escola. É um problema resolvido do ponto de vista da disponibilização de informação. Mas ainda sem solução, porque quem está na ponta ainda não sabe que o dado existe e pode ser usado com tanta facilidade. No caso do desempenho, estamos muito aquém. Só a partir da Prova Brasil é que todos os sistemas têm o resultado de seus alunos.
O que fazer para, ao mesmo tempo, oferecer uma educação de qualidade para todos e formar elites intelectuais que garantam o desenvolvimento científico e no campo das idéias?
O que temos de garantir é que tenhamos uma sociedade democrática. E, numa sociedade democrática, é preciso que haja pessoas capazes de incorporar e desenvolver a ciência e a tecnologia, necessidades de todos. Temos de separar isso de forma clara: o que é o acesso para todos e o que nós, como sociedade, precisamos. O que não pode ocorrer, entretanto, é que a elite cognitiva tenha uma única cor, uma única origem social. Os sistemas públicos não devem sacrificar os nossos Ronaldinhos, senão, outros os usarão. É perfeitamente compatível com o sistema educacional democrático o acesso e uma formação básica com as mesmas expectativas para todos, mas também um cuidado para que as excelências frutifiquem. Temos isso, de certa forma, nas escolas técnicas federais e estaduais, que fazem exames duros de seleção. Os melhores resultados no Enem são de alunos dessas escolas. O que não podemos aceitar é que o sistema público seja todo baseado na seleção.
Como fazer, então?
É preciso que, no sistema público, se ofereçam oportunidades diferenciadas para aqueles que querem e demonstrem habilidade. Nessas escolas, o projeto pedagógico tem de evidenciar a inteligência do convívio, e dizer a seus alunos que a oportunidade não se deve apenas ao mérito da pessoa, mas também a uma decisão social. Esse é um ponto que precisamos trazer para a discussão, que desapareceu do debate pedagógico como se fosse ilegítimo. Não faz sentido que só a classe média, que pode tomar a decisão de atravessar a cidade para levar os filhos para escolas específicas, selecione. Todos deveriam ter isso. O que não dá é para classificar todas as escolas pelo mérito dos alunos. É difícil encontrar esse equilíbrio. Mas já temos as experiências dos colégios de aplicação das universidades, das escolas técnicas e de algumas iniciativas privadas. Certamente, um equilíbrio pode ser encontrado.