Poder Legislativo tem uma enorme pauta de conteúdos obrigatórios a votar. Sua incorporação em redes e escolas, porém, esbarra em questões conceituais e estruturais
Publicado em 10/09/2011
Em agosto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei, aprovada pelo Congresso Nacional, que torna obrigatório o ensino de música na Educação Básica. Antes disso, filosofia, sociologia e história e cultura africana já haviam sido incorporadas ao rol de conteúdos que devem ser ministrados aos alunos do ensino fundamental ou médio.
E, se depender do desejo dos deputados e senadores, psicologia, língua brasileira de sinais (libras), educação ambiental, moral e cívica, educação no trânsito, legislação tributária, planejamento financeiro pessoal e familiar, direitos da mulher e qualidade total também passarão a ser ministrados nas escolas. Essas propostas fazem parte de um conjunto de projetos, estimado em mais de 50, que modificam a legislação educacional com a finalidade de tornar obrigatória a oferta de conteúdos nas escolas.
Por um lado, a existência de tantas propostas pode ser compreendida como a tradução de uma preocupação social com a formação das crianças e dos jovens – o que, em certa medida, é pertinente quando se constatam os baixos níveis de aprendizagem nos exames oficiais. Contudo, por outro lado, remetem a uma questão de fundo sobre a educação que temos e a que queremos: até que ponto a introdução de conteúdos no currículo produz impactos positivos sobre a qualidade do ensino? E, mais do que isso, cabe à escola transformar-se numa de "agência de veiculação de conteúdos"?
Nesse sentido, vale retomar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), responsável pela definição da organização do ensino no Brasil. O Artigo 26°, que versa sobre currículos, determina que estes devem ter uma base nacional comum e outra diversificada, adaptada às características sociais, culturais e econômicas da clientela. Em outros termos, cabe à União estabelecer as diretrizes gerais do ensino e, aos estados e municípios, definir os currículos mínimos, de acordo com as especificidades locais.
A LDB não define, então, um rol de conteúdos mínimos obrigatórios, como ocorria no passado. Apenas estabelece que o currículo deve contemplar o estudo da língua portuguesa, da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural, bem como da realidade social e política. Prevê também o ensino da arte, da educação física e de uma língua moderna estrangeira, a partir da 5ª série.
À luz desse arcabouço legal, a tendência de criar conteúdos obrigatórios começa a despertar preocupação e questionamentos. Em parte, porque vai contra a LDB, mas também porque implica uma série de dificuldades no que diz respeito à implementação das novas leis. Apesar disso, os novos conteúdos estão associados a habilidades e competências consideradas fundamentais para uma educação crítica e cidadã.
O professor Francisco Cordão, membro da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE), considera que a criação de conteúdos obrigatórios "contradiz em todos os aspectos a LDB". "A LDB fala em objetivos, não aprofunda a definição de conteúdos nem de carga horária", afirma. Seguindo esse espírito, continua Cordão, o CNE (órgão responsável pela definição das normas e pela supervisão) não define currículos, somente as diretrizes curriculares – ou seja, as orientações gerais. "A escola deve ter a liberdade de construir o seu currículo de acordo com a sua realidade."
Em outros termos, cabe à escola definir se o conteúdo será trabalhado como disciplina, de maneira inter ou transdisciplinar ou em atividades fora da sala de aula. É o que ocorreu com filosofia e sociologia, obrigatórias no ensino médio desde 2006. O ensino de música ainda não foi regulamentado e os sistemas de ensino terão três anos para se adaptar, mas a expectativa é que sua oferta se dê em moldes semelhantes a esse.
Mas, mesmo que a escola defina como os novos conteúdos serão trabalhados, existe o problema da carga horária, aponta Cordão. "O currículo pode ficar excessivamente congestionado, com ênfase nas informações, relegando a um plano secundário o desenvolvimento da capacidade de aprender", prevê.
Inchaço
O diretor de Educação Básica Presencial da Coordenação de Formação de Pessoal de Nível Superior (Capes), Dilvo Ristoff, tem uma preocupação semelhante. Para ele, a escola básica chegou ao limite de sua capacidade de absorção da "partição disciplinar".
Apesar de a LDB não abolir as disciplinas – o que legitima a atual tendência de incluir novas disciplinas e conteúdos no currículo da educação básica -, o diretor da Capes considera que é possível questionar, por exemplo, a necessidade da oferta obrigatória de sociologia e filosofia nos três anos do ensino médio, num currículo bastante inchado e em escolas em tempo parcial. "Isto pode ser questionado pela simples matemática da carga horária ou pelo bom senso, que diz que deveríamos reservar horas de estudo para os alunos, para além da sala de aula, superando o ‘aulismo’."
"Essa situação demanda dos responsáveis pela educação brasileira uma revisão curricular mais compatível com a necessidade de formação de nossos alunos nesse nível de ensino", reitera Ristoff. Uma proposta que pode ajudar nesse sentido é a implantação do horário integral no ensino fundamental e médio, mas mesmo assim existem dúvidas de que o tempo de permanência ampliado garantiria aos alunos tempo necessário para todo o currículo.
Ao lado do problema da carga horária, há o da falta de professores. Os dados da Capes, que desde 2007 assumiu a responsabilidade pela definição das políticas de formação de professores no Brasil, apontam, por exemplo, para um déficit de docentes habilitados nas disciplinas de filosofia e sociologia. A cada ano, são formados 2.884 bacharéis e licenciados em filosofia e 3.018 em sociologia, o que, segundo Ristoff, evidencia que o Brasil não gradua alunos em número suficiente para atender às escolas. A situação é séria, porque, como se sabe, esses não são casos isolados; ao contrário, são apenas um elemento num quadro de falta generalizada de docentes, especialmente de matemática e ciências.
Dificuldades à parte, existem aspectos positivos no atual processo de incorporação de conteúdos ao currículo do ensino fundamental e médio. A professora e pesquisadora Regina Vinhaes, da Universidade de Brasília (UnB), pontua que, ao longo dos últimos dez anos, toda a carga de formação voltou-se para as áreas cognitivas, tais como língua portuguesa, matemática, ciências. "Essa tendência acabou sendo reforçada quando os testes padronizados começaram a ser realizados na década passada, deixando-se de lado elementos fundamentais para o desenvolvimento integral do aluno, como a música e as artes", afirma. "É claro que língua portuguesa e matemática são importantes, mas a escola não pode se preocupar apenas com isso", conclui.
Nesse sentido, Liane Hentschke, professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente da International Society for Musical Education (Sociedade Internacional do Ensino de Música), reitera as vantagens da incorporação da educação musical ao currículo escolar. "Diversas pesquisas comprovam que o ensino da música ajuda a desenvolver a lógica e o raciocínio, produzindo impactos positivos na aprendizagem em outras áreas", afirma Liane. Além disso, do ponto de vista da filosofia, continua ela, a música é uma linguagem que faz parte de todas as sociedades, bem como colabora para a socialização.
Não basta cantar
Liane admite, porém, que será necessário um processo de adaptação e ajustes, até mesmo em virtude da falta de professores habilitados. "A regulamentação da lei vai definir como o ensino de música vai se dar, se vai ser como disciplina ou em atividades extracurriculares." O importante, contudo, defende Liane, é que o ensino de música seja de boa qualidade e desenvolvido de maneira consistente. "Não é preciso criar, necessariamente, uma disciplina. Os alunos podem ter contato com o ensino de música numa banda, desde que todos tenham a oportunidade de participar", explica. "Mas é preciso ter clareza de que não basta cantar músicas em sala de aula", pondera a pesquisadora da UFRGS.
Nesse sentido, a experiência da inclusão de história e cultura africana, em conformidade com uma lei de 2003, pode ser ilustrativa das dificuldades inerentes à inclusão de conteúdos no currículo, a ponto de o Ministério da Educação (MEC), em conjunto com outras entidades, ter montado um grupo de trabalho para desenvolver um plano nacional visando à implementação da lei em larga escala, considerando que uma avaliação, realizada em 2007, apontou a existência de boas experiências desenvolvidas no âmbito das escolas, porém pontuais.
Ao mesmo tempo, uma pesquisa realizada pela organização não-governamental Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) revela que a falta de formação e de material didático são dois dos principais empecilhos para incorporar a história e a cultura africana no currículo da Educação Básica.
Ou seja, entre o que prevê a lei e o cotidiano das escolas, existe um caminho a ser percorrido, que perpassa, necessariamente, a formação de professores, o desenvolvimento de materiais didáticos e a construção de um currículo que possibilitem aos alunos oportunidades e condições de um desenvolvimento integral.