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Cristiane Paulon com a filha Sofia: “ela se sente à vontade e eu fico despreocupada” |
De um lado, a fita resistente presa a um peitoral. A outra ponta fica nas mãos de um adulto, que puxa o encoleirado por uma praça. A cena seria considerada corriqueira, caso o utensílio estivesse sendo empregado para o controle de um animal doméstico e não de uma criança. Usada há décadas em países como EUA e Japão, a coleira chegou ao Brasil há cerca de dois anos e é motivo de polêmica entre pais e educadores. De um lado estão os adeptos da ideia, que evocam a segurança, a praticidade e a liberdade controlada. Do outro, aqueles que abominam a iniciativa, e fazem críticas diretas aos adultos que passeiam com seus filhos encoleirados.
É importante lembrar que coleira não é mais a mesma: evoluiu do modelo usado anteriormente, preso ao pescoço e ao pulso das crianças, para um jeitão de brinquedo, na forma de mochilas e bichos de pelúcia que são atados ao tronco dos filhos. Mas, mesmo com visual lúdico e renovado, ela é capaz de chocar, pois evoca, de um lado, controle absoluto e, de outro, submissão à força, valores que não desfrutam de boa reputação entre educadores e psicólogos. Para eles, é como se a controvertida coleira fosse uma espécie de apoio, uma muleta para o adulto que não assume a responsabilidade de conduzir a criança, por insegurança, medo da responsabilidade ou simplesmente preguiça. “Trata-se de uma facilidade para os pais e não para os filhos. Não vejo nada de positivo nisso”, dispara a psicóloga e educadora Rosely Sayão.
Nesses termos, o que entra em discussão é a falta de preparo da família para lidar com a esperteza, lucidez e agilidade dos filhos, que têm sede de informação e de experimentação das coisas que surgem ao seu redor. E inibir este ímpeto, segundo os especialistas, ainda mais de forma brusca, puxando o menor por uma fita, é podar uma oportunidade de desenvolvimento ou tirar de quem está conhecendo o mundo a oportunidade de aprender com seus próprios erros. Na visão de alguns educadores, o uso da coleira faz com que a criança deixe de experimentar e aprender com as consequências de suas ações e de seus movimentos. Ausência que pode ser problemática no futuro: como elas enfrentarão o mundo real quando adultas?
Os adeptos Entre aqueles que não enxergam problemas com a coleira está Ana Merzel, coordenadora de psicologia do Hospital Israelita Albert Einstein. Para ela, a guia pode ser comparada a um andador, recurso recomendado antigamente para antecipar os primeiros passos das crianças. Ela afirma não ser contra o uso do acessório. “Todos recomendavam o andador e depois descobriram que não era bom. Agora é a vez da coleirinha. Em qualquer situação é preciso avaliar o uso, ter bom senso e respeitar a opinião da criança, que tem de entender a função do acessório”, explica.
Para os usuários, o artefato se configura como um meio de proteção eficiente. “Eu uso e recomendo”, diz Cristiane Paulon, mãe de Sofia, 18 meses de idade, que afirma ter nos sequestros em shoppings, atropelamentos e outros acidentes com crianças uma motivação para adotar a coleira esporadicamente nos passeios em família. Segundo ela, a filha adora correr e odeia ficar com as mãos dadas, por isso atá-la à mochila de sapinho em lugares cheios foi a solução encontrada. “Ela se sente à vontade e eu fico despreocupada”, defende.
“Se a criança corre, é porque está sem um adulto para contê-la”, opina Roseli Sayão. Para a psicóloga, os pais não devem limitar os movimentos da criança, mas acompanhar os passos dos filhos para entender as dúvidas e encantamentos da criança, fazendo prevalecer a autoridade do adulto quando necessário. Com essa atitude, o pai pode criar explicações didáticas sobre as consequências de ações indesejáveis ou arriscadas. Poderá explicar, por exemplo, o motivo de pedir que a criança não corra sozinha ou coloque as mãos em uma vitrine, derrube produtos nas lojas, mexa no lixo, bata nos vidros, entre outras ações que podem ser perigosas ou incômodas a ela e às outras pessoas em volta.
Renata Waksman, secretária do Departamento de Segurança da Criança e do Adolescente da Sociedade Brasileira de Pediatria, vai além e qualifica o argumento da segurança usado pelos pais como uma “ilusão”. “É uma falsa sensação de segurança”, argumenta. Segundo ela, as crianças pequenas se sentem presas, podem cair e se machucar com a guia. Em vez de optar pela coleira, os pais poderiam escolher locais seguros e adequados para levar os filhos. Se houver aglomeração, talvez o lugar não seja adequado para os pequenos. “Se for necessário ir a um local com muita gente, a melhor opção são os carrinhos dobráveis”, complementa a secretária. “São fáceis de carregar, têm cinto de segurança e são muito mais confortáveis para as crianças.”
Impactos no futuro Outro ponto importante levantado pelos especialistas diz respeito à insegurança causada pelo uso frequente da coleira, já que as crianças podem associar o desenvolvimento de determinadas tarefas ao fato de estarem presas a um adulto. Mas há quem garanta que a experiência não gera nenhum tipo de dano psicológico. “Eu usei e vou colocar nos meus filhos”, afirma a jornalista Marina Valle, que não sofreu nenhum trauma por ter usado a coleira. “Muito pelo contrário: eu me sentia protegida, principalmente em locais com muita gente desconhecida em volta”, reforça. Mesmo apoiando uso do acessório, a jornalista contou uma cena significativa para quem acredita que a coleira é um recurso inaceitável: “uma família entrou na locadora e a mãe tinha uma coleira no filho, que não parava de gritar e mexer nas coisas, e ao lado o cachorro andava solto e obedecia a todos os comandos da dona”. Uma inversão de papéis que justifica discussões mais amplas e complexas, que tratem dos limites da educação e das regras de convivência social.
Para Roseli Caldas, coordenadora da Representação Paulista da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, a situação descrita remete à ideia de autonomia dos filhos, que é tão almejada pelos pais. Para alcançá-la, diz a coordenadora, as regras devem ser discutidas, contestadas e, então, assimiladas, de modo que não seja mais necessário o controle externo – muito menos o físico. Nesse processo educacional, estão presentes a argumentação, bem como a importância de que, às vezes, mesmo sem compreender totalmente, a criança atenda à voz de comando dos que a educam como recurso de proteção. “Nesse sentido, precisar de uma coleirinha para que a criança respeite o limite parece ser bastante questionável”, comenta.
Limites e possibilidades A questão da coleira infantil também traz à tona a hora de indicar os limites e possibilidades de aprendizado para as crianças. Trata-se de um desafio diário a ser buscado nas oportunidades que surgem da convivência com eles. “Isso não pode ser desperdiçado pela praticidade do uso de uma coleira, que prescinde do diálogo humano”, teoriza Roseli Caldas. “Se o espaço para conversa e elaboração dos limites não tiver sido construído e solidificado durante a infância, não haverá coleira que possa conter essas crianças no futuro.”
Diálogo foi justamente o que a advogada Paola Otero Russo usou com a filha Carolina, de quatro anos, para convencê-la a não correr para a rua no retorno da escola quando estava sob os cuidados da babá. Expansiva, Carolina é o tipo de criança que conversa com estranhos e parece não ter medo de nada. “Ela se expõe demais”, avalia a mãe. Para conter a filha, Paola explicou os perigos aos quais se expunha com este comportamento e sugeriu o uso da coleira no retorno da aula. A resposta da menina demonstrou incômodo: “É como coleira de cachorro? Não quero usar. Tenho vergonha”. Diante da recusa, Paola, que apoia o uso do acessório e já colocou em sua filha em outras ocasiões, recorreu à conversa e resolveu a questão.
Paola fez o certo, segundo os especialistas. Se os pais decidem usar a coleirinha, devem explicar abertamente isso para os filhos. Mesmo que o recurso seja adotado com boa intenção, é preciso levar em conta que a coleira tem um impacto visual negativo, já que é associada aos animais, e isso pode causar reações ruins. “É importante esclarecer por que optaram pelo uso”, pondera Roseli. Em sua pesquisa sobre o assunto, a professora de psicologia ressalta que a coleira pode até aparecer como vilã, mas atua, na verdade, como um termômetro dos relacionamentos no mundo contemporâneo. Ela explica que as relações atuais se dão por meio de “objetos concretos e virtuais”, em que seres humanos são conectados uns aos outros pela mediação de coisas. “Se a coleira substitui o diálogo, o impacto é negativo. Na medida em que se usa a conversa com a criança, cria-se uma humanização”, finaliza.